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Elísio e o imponderável adeus

Por Valério Maúnde

 

Elísio Macane é funcionário público, afecto a um dos ministérios do nosso país. Como todo o bom funcionário estatal, cumpre escrupulosamente o horário laboral: às 07h30m, está já no seu sector de trabalho e, pontualmente, às 15h30m, tem a sua marmiteira na mão e o pé na saída. É nesses exactos horários em que Elísio entra e sai do seu local de trabalho todo o santo dia, de peito cheio e de cabeça erguida, pela firme convicção de que, na função em que trabalha – logística, ou procurement como preferem alguns, tentando parecer importantes – não tem como ser envolvido no crime que ditou a transferência de Moçambique para outro hemisfério.

Ao volante do seu Toyota Run-X, mas que, pelo acelerado estado de degradação, resultante dos embates e arranhões por condução em estado de embriaguez, perdeu a última letra, lendo-se agora apenas Run (corre ou foge em Inglês). E é por este exacto motivo – fuga – que Elísio, por dois longos anos, ao invés de sair do trabalho directo para casa, na Zona Verde, faz paragens quase que obrigatórias (o mais certo é dizer aliviadoras) no bairro de Bagamoio, para passar algumas horas nos braços de Marta, sua amante, a quem eufemicamente trata por refúgio.

O sol já repousa quando Elísio buzina à entrada da casa da Marta, cuja renda, como é obvio, é paga por ele próprio, o que dá sentido à seguinte reformulação: …Elísio buzina à entrada da sua casa-2. Marta abre apressadamente o portão, para a entrada da viatura, mas não esconde a surpresa, pois, conforme o hábito e acordo, as visitas são às quartas e sextas (às vezes aos sábados), mas nunca aos domingos, jamais, pois esse dia é sagrado: é para a missa e para a família.

Já no interior da casa, conforme manda o manual de procedimentos da boa amante, Marta dá-lhe um beijo prolongado e depois tira-lhe o casaco, para ele se sentar confortavelmente no sofá. Com o seu homem, aliás, com o homem da outra já acomodado, Marta, que via uma novela, muda para o canal de desportos e, sem demora, vai à cozinha buscar uma cerveja e preparar um petisco para o seu emprestado homem.

Boas-vindas feitas, Marta senta-se ao lado dele e recosta a cabeça no seu ombro, em silêncio. Este silêncio esconde uma certa indignação e no seu íntimo protesta: “não é porque é ele que paga a renda e as contas que tem que chegar sem avisar, também tenho vida própria”, mas engole a insatisfação, pois bem sabe que reclamar é direito e ofício de esposa, então, mantém-se calada.

Minutos depois, Elísio vai à casa de banho e deixa o celular desbloqueado sobre o sofá. Uma inquietante curiosidade invade a alma de Marta, que se sente tentada e impelida a pegar no aparelho e descobrir o teor das mensagens trocadas com a esposa, a duração das chamadas, as fotos na galeria, mensagens do Ponto 24 e M-pesa, mas contém-se, pois recorda-se que inspecionar o telefone é também privilégio de esposa. Esta curiosidade, diga-se, em saber o que se esconde por trás da tela de bloqueio daquele celular é frequente, mas, felizmente sempre evitou tal indiscrição. Dizemos felizmente porque, tendo-o feito, descobriria que sempre que lhe envia mensagens com o teor “posso te pedir algo”, é do 84111 que Elísio as recebe.

Marta sacode a cabeça para espantar os pensamentos que a assombram. Nisso, Elísio regressa e ela diz as palavras próprias de amantes:

– Que bom que vieste me ver, estava com saudades.

– Eu também, eu também – repete Elísio, buscando convencer-se da veracidade das suas palavras.

– Pareces preocupado, amor. Não queres contar o que se passa?

– Não é nada, só estou cansado – abrevia.

Marta não faz ouvido de mercador, levanta-se imediatamente a preparar um banho quente e aromático para o fatigado homem. Elísio mergulha de corpo e alma nas graças da amante e esquece-se da missão que originou a sua visita intempestiva.

São quase 20 horas quando Elísio olha para o relógio. De sobressalto, pula da cama e ajeita-se às pressas. – Está tarde, tenho que ir.

Marta, sempre compreensiva e atenciosa, desce da cama, veste o roupão e ajuda-o a ajeitar-se para ir ao encontro da mulher, e fá-lo com todo o zelo, como se o fizesse em jeito de retribuição à esposa, que, com igual ou superior zelo, o arranja para si.

Já a caminho de casa, Elísio trava um diálogo consigo próprio e censura-se severamente por não ter tido coragem de pôr fim à sua relação extraconjugal, como tinha decidido há dias. O discurso estava preparado e ensaiado. Bastava chegar e dizer: – Marta, minha querida, foram maravilhosos os momentos que vivemos nestes dois anos, mas já não está a dar para mim, o custo de vida está alto e já não consigo manter a minha família e a ti. Está na hora de acabarmos.

Era isto dito e estava tudo acabado entre eles, mas faltou-lhe coragem. Para piorar, Marta não facilitou a situação. Se ela ao menos tivesse reclamado de alguma coisa, tivesse denotado alguma má vontade ou indisposição em cumprir o seu papel, qualquer coisa que o convencesse de que não valia a pena manter aquela relação, mas não, pelo contrário. Foi como se ela tivesse adivinhado o perigo e, por isso, esforçara-se a dar-lhe uma última amostra do que ele perderia caso decidisse deixá-la.

Em casa, esposa e filhos aguardam-no para o jantar. Nas travessas sobre a mesa há apenas arroz fogado e um magro carapau frito de número negativo (-16 talvez). Aquela modesta e carente refeição contrasta de forma gritante (de um grito que ensurdece) com os faustosos banquetes que Elísio financia para a sua amante. No seu íntimo, brota-lhe um misto de vergonha e culpa e jura que fará cumprir a sua decisão e voltará a ser um homem honrado, por amor à família ou por incapacidade financeira, o facto é que assim fará. Amanhã ele ser um homem novo.

Mas cá entre nós, que ninguém nos ouça, amanhã será, de facto, um novo dia, e Elísio até pode acordar mudado, mas Marta não, esta acordará igual a sempre: encantadora, amorosa, solícita e com a mesma habilidade de enredar e fazer naufragar as melhores intenções de Elísio Macane.

 

 

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