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“É fundamental que a construção artística tenha uma mensagem”

Eliana Silva estreou-se em livro. Pela Plural Editores, a escritora portuguesa residente em Moçambique publicou Bina, a descobridora do Índico, um infanto-juvenil que mescla inocência, sonhos, coragem, atrevimento e vários contactos culturais. A protagonista da história é uma menina portadora do albinismo. Nada ao acaso. Através da personagem muito parecida consigo, a autora quis demonstrar que “é fundamental que a construção artística tenha uma mensagem” além do estético, portanto, útil à sociedade.

 O título do seu primeiro livro é Bina, a descobridora do Índico. Por que não Bina, a descobridora do mundo?

Quando comecei a construir a personagem e este universo que parte de Moçambique, para mim, era importante falar sobre as cores do Índico. Não sabia muito bem qual seria o desenrolar da história, mas era importante manter uma ligação geográfica a esta zona de Moçambique. Por isso tentei fazer uma ligação directa à geografia, e quero muito que Bina seja a descobridora do mundo.

Quis fazer do Índico um começo para algo maior?

Exactamente. O Índico é o ponto de partida onde a Bina começa a descobrir todas as geografias e todas as culturas que ela tem por descobrir. É a ponte de entrada para uma nova descoberta.

Que cores do Índico tornam este espaço diferente de outros lugares que a Eliana conhece?

Acho que o Índico é um oceano muito especial. Parece mais calmo, mas tem muita força. Uma coisa que era muito importante para mim é o sítio onde a Bina nasce, a Ilha de Moçambique, um lugar mágico. É difícil pôr em palavras aquilo que se vive na Ilha de Moçambique. Eu quis mostrar essa singularidade, daquelas águas cristalinas e daquela atmosfera ambiental, que é completamente inspiradora.

 Admite o seu interesse em contribuir para tornar o espaço Ilha de Moçambique algo além da razão?

Eu tentei tornar esse espaço efectivamente especial, para as pessoas perceberem que a Ilha tem uma aura e uma vibração muito específica – e olha que eu já viajei um pouco por este mundo e o que encontrei na Ilha de Moçambique é mesmo especial: as pessoas, a história, os cheiros. Quis trazer um bocado desse misticismo e essa fantasia com uma paleta de cores visuais para que o leitor jovem ou adulto pudesse ter indícios daquilo que é o universo do Índico.

Considero que a Bina voa de bicicleta, daí estar em tantos lugares e a conhecer pessoas diferentes. Quem é essa personagem infantil na sua percepção?

Quis que a Bina fosse uma personagem rebelde, mas no sentido positivo. Ela é uma personagem muito curiosa, destemida e muito corajosa. Depois, ela tem a felicidade de se cruzar com pessoas que impulsionam essa forma de ser, sempre com respeito e com condições de perceber o que está a fazer.

Essa foi a forma que encontrou para quebrar estereótipos, já que, no contexto machista em que é gerada, a menina impõe as suas pretensões como é raro na sua idade?

Sem dúvida. Não seria verdadeira se dissesse que isso não foi importante para mim. Quando construi a história, não pensei contra nada, mas quis valorizar, acima de tudo, o papel que a educação tem no crescimento de jovens raparigas. É importante conhecermos os lugares e questionarmos as coisas. Eu gostava muito que esta personagem fosse uma referência. Ela é portadora do albinismo e isso foi importante para mim porque acho que as pessoas devem se rever na literatura. Ela tem albinismo, sim, mas isso nunca é um entrave. Nesse sentido, eu gostaria que mais Binas existissem ao nosso redor: meninas portadoras de albinismo que não sintam que o mundo é um entrave ou que acreditem que podem descobrir o mundo que quiserem com coragem. É fundamental que a construção artística tenha uma mensagem. É isso o que me motiva.

Tive a percepção de que esta história não existiria se a Eliana não tivesse passado pelos espaços ficcionados. Além da Ilha, Brasil, Angola, Franca e Japão. Concorda?

Sem dúvidas. Não sei se tem a ver com o meu próprio alter-ego, que acabei por transpor muito daquilo que eu sou e vi. Sem dúvidas, a história da Bina é um reflexo das minhas experiências, das pessoas que tive a sorte de me cruzar e das culturas que tive a sorte de visitar. Felizmente, tive a liberdade de fazer da história aquilo que eu quis, o que me deu muito gozo. E acho que uma das coisas bem conseguidas neste livro é mesmo essa de nos dizer que não há fronteiras para a nossa imaginação. O livro permite-nos a viagem que nós quisemos.

Que mundo a escrita desta história permitiu-lhe conhecer?

Honestamente, foi mais um mundo da literatura. Compreendi, enquanto escrevia, que escrever para crianças é uma grande responsabilidade. Às vezes pensamos que, ao escrever para crianças, podemos descorar algumas coisas. Na verdade, depois percebemos o poder da palavra e da criação do universo e de imaginários. Transpor esses valores para as crianças é formar e acho que essa acaba sendo a grande descoberta que tive.

Como surge a ideia de escrever a história da Bina?

A ideia surgiu há muitos anos. Nos meus tempos de jornalista, eu sempre tive uma grande curiosidade pelos portadores de albinismo. Sempre tentei perceber o estigma à volta deste problema. Por volta de 2010 comecei a investigar para perceber o que se passava. Aí encontrei vários trabalhos feitos sobre os ataques aos albinos no Norte de Moçambique e na Tanzânia. Passados alguns anos, ocorreu-me criar uma personagem albina que viaja pelo mundo de bicicleta. Tinha de ser albina porque não existem referências literárias dessas. Há cerca de dois anos, fiz uma proposta à editora, que aceitou.

Acho a Bina muito parecida consigo?

Há quem diz isso e eu acredito que sim. Não sei se é por ser o meu primeiro livro ou e imaturidade de escritora, mas foi inevitável eu passar-lhe os meus valores e alguma inquietude que tenho em relação ao mundo. Cada vez mais apercebo-me que fui honesta em relação aos motivos que me fizeram escrever o livro. A minha imperfeição passou para a perfeição da personagem.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Pão de açúcar, de Afonso Reis Cabral, e
Neighbors, de Lília Momplé.

 

PERFIL

Eliana Silva nasceu em Lagos, Portugal. Assume-se como uma lacobrigense de gema. Com um pai caracteristicamente alentejano e uma mãe irreverentemente angolana, teve o privilégio de usufruir, segundo afirma, do melhor que a lusofonia trouxe ao mundo, desde cedo. Mudou-se para Maputo em 2014, tendo desde então lutado por singrar no mundo da publicidade, activação de marcas e comunicação estratégica.

 

 

 

 

 

 

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