O País – A verdade como notícia

Do Voo das Fagulhas à luz diáfana do amor

Por: Martins JC-Mapera

Universidade Licungo/FLH

jose.mapera@ua.pt

 

 

Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece (João 9:41).

 

É a segunda vez que apresento Adelino Timóteo, exactamente, neste espaço cultural do Instituto Camões. A primeira vez, foi em Dezembro de 2018, quando nos brindou com uma obra magnífica, intitulada A volúpia da pedra. Nessa apresentação, considerei Timóteo “um escritor de civilização alta”, de uma visão e de um olhar atentos ao que a paisagem emocional oferece para contemplar e para sentir, configurando uma rara excepção na sociedade moçambicana. Ou seja, o autor de A luz diáfana do amor, obra que nos apresenta, aborda temas de tradição greco-romana, muito além das metáforas de amor platónico. As suas obras têm um simbolismo bíblico muito forte, o que aumenta o nível da minha desconfiança em relação à sua formação humana, à cultura e às tradições.

No dia 19 de Janeiro de 2022, recebi uma chamada virtual de Alemanha, esse território que nos lembra os temores do nazismo de Adolfo Hitler, com a sua ideologia de constituição de um império mundial sem judeus. Não me assustou, porque, hoje, o mundo está globalizado e o papel de academia, da cultura e da arte reduziu, de certa forma, as tensões políticas internacionais. Com razão, afinal era o Adelino Timóteo quem estava doutro lado do oceano. As saudações foram dilatadas, preenchendo o vazio que o tempo criou, desde 2018, que não nos víamos e nem falávamos. A meio das mesuras, Timóteo procurou absolver-se perante essa distância temporal.

E, finalmente, veio a conversa mais importante sobre A luz diáfana do amor e O voo das fagulhas. Chanceladas por Alcance Editores, as duas obras celebram os 20 anos de produção literária de Adelino Timóteo. É uma celebração devida, por um lado, voando sobre os céus do amor até transpor “a fronteira do sublime”, e, por outro, iluminando o caminho do amor, atravessando as mazelas que o próprio fogo faúlha em forma de chama ardente, que só ao peito de quem ama se sente e se recente.

As duas obras apresentam-nos o mesmo objecto temático, o amor, diferindo apenas a forma como ele se manifesta na atmosfera sentimental do sujeito poético. Por exemplo, em O voo das fagulhas, chancelada em Janeiro de 2021, Rui Rocha, o editor, apresenta o perfil artístico de Adelino Timóteo, na sequência dos vinte anos de carreira, cuja caracterização se ajusta ao cunho literário que o autor ocupa no campo da poesia, do romance, da arte plástica e da arte da sensualidade óptica e verbal. O primeiro poema desta obra, com o título “Os segredos da arte de amar”, testemunha essa noção pedagógica do amor: “Um amor não merece as pedras // que todos os dias lhe atiramos”. Este conselho é pragmático e primoroso, e é religiosamente ético. Para ele, o amor deve ser visto com “virtude de um pássaro // que quer voar em direcção // à larga linha do horizonte”. Nestes versos, o conceito do pássaro é polissémico, significando, contextualmente, a noção da liberdade e paz, da cultura e do humanismo, com recurso a metáforas que levam a voar sobre o horizonte do pensamento e da educação.

Em A luz diáfana do amor, o poeta Adelino Timóteo lembra-nos a parábola de João (9:41): “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece”. O pecado de Timóteo é justo e indescritível. Hoje em dia, é preciso amar. A nova ordem mundial exige que nos amemos uns aos outros; que enterremos o machado da guerra para que a paz predomine.

A luz e o fogo são metáforas co-simbólicas de uma mesma construção filosófica. O fogo, enquanto arquétipo poético é representado pelos substantivos “fagulha” e “luz” que titulam os dois livros de Timóteo. A luz não só ilumina, mas também acaricia os nervos e, em última estância, queima. A fagulha provoca sessação térmico-luminosa apaixonante, penetrante e agradável de ver no peito e nos olhos. Isso tudo transforma o homem em autêntica labareda, como afirma São Martinho: “a sua lei, como a de todos os fogos, é a de dissolver e unir à fonte de que está separado” (cf. Chavalier & Gheerbrante, 2010, 331).

Considerando esta relação íntima entre o fogo e o corpo, a literatura budista de Sumyttanikaya, substitui o fogo sacrificial do hinduísmo pelo fogo interior, que é ao mesmo tempo conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro: “Atiço em mim uma chama… O meu coração é o lar, a chama é o Eu domado”. Perante isto tudo, a poética de Adelino Timóteo parece romantizar o mundo dos prazeres, ao considerar o que já sabíamos da História da Sexualidade, de Foucault, que defende que a sexualidade é co-extensiva com o poder, não reconhecendo, portanto, as relações concretas de poder que constroem e simultaneamente condenam a sexualidade existencial. Nesta perspectiva, os versos de Timóteo constroem um mundo que ultrapassa as categorias de sexo e identidade. Vejamos as seguintes declarações do sujeito poético em A luz diáfana do amor:

Temo muito a indolente sucessão interminável da desgraça que o fogo planteia. É o temor um acto de amor. Subitamente, para matar essa inquietude, um tempestuoso vento entra-nos de golpe pela janela, espalha a sua quente e imperceptível aragem com a sua mecânica e tenebrosa força, com a sua espectral luz, a vela cai e num silvar defuma-se, a luz morre, submergindo-nos na penumbra (LDA, p. 20).

A estrutura icónica de A luz diáfana do amor condiz com essa concepção simbólica da sexualidade, uma construção ontológica do genótipo do amor cuja acção materializa os desejo, o belo e o lazer. Nesta obra, parece haver preocupação em mostrar que os apetites e as emoções não devem ser sexualizados, considerando importante a contemplação comediante da realidade lasciva do corpo feminino, mesmo nas trevas, por isso, quando atinge o clímax, “a vela […] defuma-se [e] a luz morre”.

Do ponto de vista da superestrutura, O voo das fagulhas apresenta uma composição que oscila entre verso e prosa, surgindo de forma fragmentada, mas coesa e coerente. É na prosa poética onde a estética do amor, liminarmente interpretada como a doutrina do prazer, se assume como um espaço de presentificação humanística e de refúgio. Vejamos este trecho:

És um livro que me leva errante a furnas da alegria, como uma escada de subir aos céus, lenta e aos beijos. És o livro de evitação, e imitas uma borboleta em êxtase em haste dos céus infinitos, a leveza de uma libélula em êxtase, em voo, depois ao que aos olhos se dá a sua cauda túrgida. És o antepassado de uma bebedeira natural, por isso quando há guerra refugio-me em ti, por isso quando há fome busco em ti o alimento, o pão, a água e me entontece com o cálice de vinho do teu corpo. (VdF, p. 50).

Está visível que o interlocutor do sujeito poético ocupa um estatuto enciclopédico, uma figura demiúrgica, porque, pela natura social, e nas sociedades tropicais, a mulher é quem confecciona o alimento da vida e, ela própria se transforma nesse alimento que mata a fome dos prazeres.

As duas obras que nos são apresentados pela Alcance Editores são também o pão e a água que a sociedade necessita para alimentar a humanidade. Por isso, o que aprendemos d’A luz diáfana do amor (2022) e d’O voo das fagulhas (2021) situa-se entre o bem e o mal, ou seja, o autor mostra como ele, no sentido de um simbolismo cristão, se esforça por quebrar a maldição que a falta de amor, a ausência da noção da diferença e da alteridade,  distribuindo as partículas luminosas do amor aos leitores, que conduzam ao bem-estar do espírito, à paz e à reconciliação.

Bem-haja, Albino Timóteo, porque está muito bem acompanhado pela Alcance Editores nesse voo que procura alcançar a aragem do bem.

Beira, 10 de Fevereiro de 2022.

 

 

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