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Drama, queixas, lamentações…relatos de noites mal passadas nos centros de acomodação

Foto: O País

Há vítimas das cheias que dormem no chão, nas carteiras e outras sentadas em alguns centros de acomodação que estão na vila de Boane, Província de Maputo, porque não receberam colchões nem cobertores. “O País” fez uma ronda por esses locais e traz relatos de noites mal passadas.

Estivemos nos centros de acomodação que estão na vila de Boane, Província de Maputo. Eram por volta das 20 horas quando chegámos ao primeiro centro, que se localiza na Escola Secundária Joaquim Chissano e com cerca de 1800 vítimas das cheias.

Fomos com um único objectivo: ver como é que as noites são passadas. De história para história, fomo-nos surpreendendo com o que cada um ia contando em relação às noites mal passadas e não só.

“Isso não é vida. Não posso dizer que estamos bem assim. Não é fácil. Estamos numa situação complicada. A nossa alimentação é difícil e pior para as crianças. É muito difícil ter comida. Fazemos filas para termos comida, mas nem sempre é possível. E simplesmente ficamos sentados. Não temos nada”, este é o relato de uma das vítimas que resume o drama que os deslocados vivem, mas vamos ao detalhe da história.

Deixaram tudo para trás, salvaram suas vidas que, nos centros de acomodação, lhes são pesadas. “Toda a nossa comida e todos os bens foram arrastados pelas águas. Estamos a viver sem nada que seja nosso. A vida é muito pesada”, contou Florência Mário, uma das vítimas das cheias, com um tom de revolta.

Os dias nos centros de acomodação são difíceis e quando o sol se põe, as famílias preparam-se para viver um pesadelo que dura a noite inteira. As vítimas das cheias que estão no centro de acomodação da Escola Secundária Joaquim Chissano dormem nas carteiras e até em locais improváveis, debaixo delas.

“Eu sequer consigo virar. Se me canso, nesta posição em que estou, acordo e fico sentado porque isto me incomoda, de verdade. Isto é uma madeira. Não me mexo. Estou na cadeia e assim fico até amanhecer. Durante o dia, peço emprestado esteira aos irmãos que têm”, revelou Agostinho Abdurremane, vítima de cheias.

Além de não terem colchões ou esteiras para dormir, os deslocados das cheias sequer têm cobertores que cubra o rosto e, ainda que seja por uma noite, esquecerem-se da dura realidade do presente.

“Ajeitei uma manta. Fiz uma divisão. Uma parte é esteira e a outra uso como cobertor. Não temos onde reclamar. Não há como. A vida é assim”, disse Atanásio Feliciano, num tom resignado.

Aos reassentados vivem na incerteza ou mesmo na dúvida se, algum dia, poderão ter colchões ou cobertores. “Eu estou aqui há muito tempo e nunca ouvi alguém falar de esteiras. Estamos a dormir na esteira, da maneira como está a ver-nos”, afirmou Fernando Alberto.

Diferentemente dos homens, as mulheres conseguiram levar consigo capulanas, mantas e esteiras que improvisaram para poder dormir com os seus filhos. Numa sala dormem, em média, 50 pessoas.

“As noites não têm como ser fáceis porque dormimos no cimento. A capulana que tenho é pequena para mim e os meus netos”, reclamou Maria Nhaca, que está como deslocada das cheias no centro de acomodação da Escola Secundária Joaquim Chissano.

Pensavam que, resgatadas das cheias, teriam condições melhores nos centros de acomodação. Uma expectativa frustrada.

“Achávamos que chegados aqui, teríamos onde dormir e o que cobrir. Mas já há três dias que não fomos dados nada. Ainda não disseram nada até hoje. Não sabemos se dão cobertores ou algo que possamos estender para dormir, nem sobre quando é que nos vão liberar para voltarmos às nossas casas, porque dizem que ainda estão submersas”, expôs Carmelinda Manhiça, vítima de cheias.

A isto, junta-se a velha reclamação sobre a alimentação. “Quando chega a hora de nos dar a alimentação, não o fazem. Depois de ter comida às 10 horas de ontem (falando de segunda-feira) às 22 horas e só consegui xima sem caril. Assim, estou a passar mal de dores de estômago”, queixou-se Esmeralda Mussa, vítima de cheias.

Continuamos a nossa ronda pelos centros de acomodação. Chegámos à Escola Primária Boane-Sede, onde há cerca de 800 vítimas de cheias e as reclamações são de sempre. “Nesta escola, temos falta de água para tomar banho, as nossas casas de banho não estão em condições e há dias que demoramos jantar porque falta lenha para podermos cozinhar”, denunciou Laura Jacinto, deslocada de cheias.

E o que também falta a estas famílias deslocadas são redes mosquiteiras para a prevenção da malária. Aliás, há um paliativo: “Recebemos dragão com o pessoal da Cruz Vermelha para podermos acender e passarmos a noite minimamente protegidos”.

Há quartos que sequer têm iluminação.

“Lá de onde nos tiraram, havia mata-mosquito e velas para iluminação. Aqui onde estamos sequer há energia. Ainda nem nos disseram nada”, respondeu Pérola Lumbela, deslocada de cheias, com um tom de hesitação.

Uma situação revoltante. “Nós somos tratados como se fôssemos pessoas que estão a pedir esmola. Nós não quisemos que aquilo acontecesse connosco”, lamentou.

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