Manifestações contra o encerramento do acesso a uma área de exploração de recursos minerais da mineradora Vale terminou com a morte de um cidadão. A vítima foi baleada por um agente da polícia. A área em disputa garante a sobrevivência de várias pessoas em Moatize que lá recolhem lenha e pedra para comercializar
Há cerca de seis anos, o Governo concessionou uma área à Vale Moçambique, no bairro de Nhantchere, em Moatize, para a exploração de carvão mineral. A área é tradicionalmente usada pelos residentes locais para a busca de lenha, frutos silvestres e extracção de pedras comercializadas para o sustento familiar. Aliás, mais de metade da população ali residente sempre sobreviveu à base dos recursos existentes na área concessionada.
Aquando da concessão da área em causa, o Município, a empresa mineradora e as comunidades residentes nos arredores acordaram que a empresa podia vedar o espaço, mas deveria deixar portões em vários pontos, a fim de permitir que as comunidades continuassem a aceder à mata para fazer uso dos recursos ali existentes.
Entretanto, para a surpresa dos residentes do bairro de Nhantchere, no passado dia 13 do presente mês, logo pela manhã, trabalhadores da Vale, munidos de equipamentos de escavação e montagem de redes, fizeram-se presentes nas duas principais entradas que dão acesso à área, com o objectivo de encerrar as entradas.
Julião Maceque, líder comunitário, contou ao “O País” que, antes das 08h00 daquele dia, recebeu uma chamada telefónica de um trabalhador da Vale, perguntando-lhe se tinha conhecimento de que os portões de acesso à área seriam encerrados. “Respondi que não e apelei à empresa para contactar o presidente do município, para junto deste encontrarmos outra solução, porque as comunidades daqui ainda se alimentam dos recursos destas florestas. Infelizmente, ignoraram o meu apelo, pois, minutos depois, soube que tentaram fechar os acessos, mas foram impedidos pela população”, afirmou Julião Maceque.
O facto foi confirmado por Ericia Tomé, residente em Moatize, cuja residência faz limite com a área concessionada à mineradora brasileira. “Os funcionários da Vale tentaram vedar a área. As máquinas abriram covas para montar as vedações e nós entrámos para impedir. Usaram a força da polícia para nos escorraçar. Saímos e começámos a arremessar pedras aos agentes da polícia. Eles começaram a disparar e uma das balas matou o meu vizinho. A confusão aumentou e eles abandonaram o local. Nós vamos continuar a usar estes acessos para procurar lenha e extrair pedras”, contou Ericia Tomé.
Os populares, enfurecidos, não esperaram pelos peritos da polícia e transportaram o corpo para a residência do líder, onde continuaram a manifestar-se.
“Sim, nós fizemos isso, porque julgávamos que o nosso líder estava do lado da Vale. Felizmente, ele era inocente em torno daquela atitude da mineradora. Apareceram as autoridades municipais e transportaram o corpo para a casa mortuária”, relatou Saimone, um dos elementos da comunidade envolvidos nas manifestações.
A vítima tinha 25 anos de idade e era pai de dois filhos menores, um deles com menos de um mês de vida. Os parentes da vítima sentem-se desamparados e querem que a justiça seja feita. Para eles, deve ser a empresa mineradora a assumir as despesas.
“Nós queremos que a Vale assuma todas as despesas dos filhos e da esposa do nosso familiar, pois foram eles que chamaram a polícia. Queremos que apoiem os menores até atingirem a maioridade”, afirmou Catarina António, irmã da vítima, cujos restos mortais foram sepultados no sábado passado, na sua terra natal, distrito de Tsangano, em Tete.
A comunidade de Moatize garante que continuará a manifestar-se, mesmo que morram mais pessoas, com vista a impedir o encerramento dos acessos à área concessionada. O líder comunitário diz que a população tem razão, pois é naquele lugar onde busca o seu sustento.
“A Vale e o Governo deviam estudar mecanismos e formas pacíficas para pôr fim a este problema, pois encerrar os portões é sinónimo de morte para muitos de nós, uma vez que dependemos grandemente dos recursos ali existentes para a nossa sobrevivência. Aliás, foi por isso que o acesso à zona em referência foi negociado entre a vale, as autoridades distritais e a comunidade local. Estamos surpreendidos com a atitude da Vale”, apelou o líder comunitário.
Polícia criou uma equipa especial para clarificar o caso
Cerca de uma semana após a manifestação popular que fez um morto e um ferido, o Comando da PRM em Tete ainda não apurou o que efectivamente aconteceu na manhã daquela quinta-feira.
Deolinda Matsinhe, chefe das relações públicas da PRM em Tete, afirmou, ontem, que foi criada uma equipa interinstitucional para clarificar o caso. “Esta comissão ainda está a apurar o que teria acontecido naquele dia. Logo que o relatório estiver pronto, não hesitaremos em partilhar com o público”, disse Deolinda Matsinhe.
Na manifestação, para além da vítima mortal, um agente da PRM foi ferido. O mesmo contraiu um ferimento num dos dedos, causado pelas pedras lançadas pelos manifestantes. Foi assistido e encontra-se fora de perigo.
De acordo com os populares em Moatize, o agente que terá disparado contra os manifestantes está envolvido num outro caso de baleamento mortal de um menor registado há meses, em Moatize, quando estava a perseguir um ladrão.
“Neste momento, é praticamente impossível confirmar ou desmentir esta informação. Resta-nos esperar pela perícia policial para sabermos quem foi o autor do disparo. Lamentamos a morte e apelamos à população a não recorrer a agressões e vandalização, no sentido de reivindicar um direito”, concluiu a chefe das relações públicas da PRM em Tete.
Entretanto, um antigo inspector da polícia e jurista que tem prestado assistência jurídica às comunidades do distrito de Moatize não tem dúvidas de que houve negligência e excesso de zelo por parte da polícia e apela a que o Estado puna exemplarmente o autor do disparo que tirou a vida a um dos manifestantes.