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Dignidade e desafios em “Lagartos de Madeira e Zinco”

Numa sociedade marcada pela tensão entre a preservação das tradições e a pressão da modernidade, “Lagartos de Madeira e Zinco” se destaca como um retrato vívido e crítico das complexidades da vida em Moçambique, capturando a luta pela identidade e a resistência diante das desigualdades.

A narrativa de Hélio Nguane mergulha profundamente nas adversidades enfrentadas por indivíduos que, em meio a uma realidade brutal, buscam dignidade e sentido.

Com uma combinação de lirismo e realismo, a obra expõe o impacto das transformações sociais e culturais sobre as vidas cotidianas, revelando as fissuras e as tensões que moldam a experiência de seus personagens.

Nguane utiliza uma linguagem imersiva e evocativa para retratar a luta pela sobrevivência e pela dignidade num contexto marcado pela precariedade. Desta forma, a crónica não só expõe as duras realidades da vida em Moçambique, mas também provoca uma reflexão mais ampla sobre o impacto da modernidade nas tradições culturais e nas relações sociais. Como diz Fernando Pessoa, “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.

A linguagem, ainda que bela, no entanto, pode apresentar desafios, com palavras e expressões menos comuns que se desdobram pela narrativa, dificultando a compreensão para alguns.

De facto, através de personagens como João Matandza, o autor explora a luta diária pela sobrevivência. O vínculo com a ancestralidade e as raízes culturais é um tema recorrente, ressaltado por referências a locais significativos como Massinga e a presença constante de influências urbanas corruptoras.

A obra é permeada por conceitos e representações que provocam uma reflexão sobre a natureza humana e os conflitos sociais. Aliás, a descrição das roupas gastas e dos pés rachados de João Matandza não é apenas um detalhe físico, mas uma representação visceral de sua trajectória difícil e da aspereza do ambiente que o cerca.

“Quem com pés descalços conhece seu destino, com calos conta como foi dura a sua caminhada”, escreveu Josias Doba, e essa dualidade ressoa fortemente na luta e na esperança presentes na narrativa de Nguane. Cada passo que João dá com os seus chinelos, que “raspam a entrada, roçam a areia”, é uma metáfora para a árdua caminhada da vida. A caixa que ele carrega, destinada a conter 48 ovos cozidos, sal e o dinheiro da receita, evidencia responsabilidade e esperança, ainda que frágil, contrastando com seu estado físico debilitado.

Embora a construção dos personagens seja sólida, o desenvolvimento do enredo poderia ser aprimorado com uma estrutura narrativa mais clara e objectiva, o que potencializaria a dinâmica da história, tornando-a mais acessível e impactante.

Efectivamente, a interacção dos personagens com o ambiente urbano também é notável. Nguane descreve a presença do pregador no transporte colectivo como um reflexo da persistência da espiritualidade, num contexto de indiferença e rotina exaustivo.

Por um lado, a crónica apresenta várias passagens ambíguas. Aliás, a falta de clareza sobre os sentimentos e pensamentos internos de João, durante as interacções com as profissionais do sexo, pode dificultar a compreensão completa de suas motivações e reacções.

Por outro lado, a obra permanece intrinsecamente envolvente. As descrições minuciosas das adversidades diárias, como o caos no transporte colectivo e a necessidade de lidar com a violência e a coação, evidenciam as dificuldades enfrentadas pelos moçambicanos em busca de dignidade e estabilidade.

Ora, enquanto os atletas olímpicos se tornam heróis luminosos num palco mundial, a crónica de Nguane ilumina as sombras que persistem nas vidas das pessoas comuns, lembrando que, para muitos, a verdadeira vitória é encontrada nas batalhas silenciosas da vida cotidiana.

No capítulo intitulado “Ontem foi o meu aniversário”, o autor aborda a temática do tempo e da memória de maneira pessoal e introspectiva. Utilizando a celebração de um aniversário como pano de fundo para explorar reflexões mais profundas sobre a vida, as mudanças e as permanências.

A rotina matinal descrita pelo narrador, que envolve um olhar para a mãe no espelho do vaso e repetição acções cotidianas, contrasta com a reflexão interna sobre mudanças.

Nguane manipula o tempo narrativo de forma eficaz, demonstrando habilidade em transformar o ordinário em algo extraordinário. A menção ao aniversário serve como um ponto de ancoragem para reflexões mais amplas sobre o que mudou e o que permaneceu inalterado na sua vida.

Mais adiante, em “Perdi a minha melhor crónica”, o autor oferece uma narrativa que nos leva ao âmago da frustração criativa, enquanto também nos faz refletir sobre a dependência tecnológica e os desafios inerentes à escrita. Este capítulo é uma montanha-russa emocional que revela tanto os pontos fortes quanto as limitações da obra.

A falha do computador não é apenas um contratempo, mas uma metáfora para a fragilidade do trabalho digital. A tecnologia, que deveria ser uma aliada na criação, revela-se um campo minado, onde um simples erro pode destruir dias de esforço e inspiração.

Nguane compartilha uma experiência pessoal e íntima, conferindo uma sensação de realidade que ressoa profundamente com qualquer pessoa que já tenha enfrentado uma perda criativa. A inclusão de detalhes específicos, como a tentativa desesperada de recuperação e a oração final, reforça a veracidade e a proximidade da narrativa.

A narrativa, embora emocionalmente rica, sofre de previsibilidade. A ideia de uma falha tecnológica, causando a perda de um trabalho, é uma situação familiar e esperada. Isso diminui o impacto da história, que poderia se beneficiar de reviravoltas mais inesperadas ou de uma complexidade maior no enredo.

O capítulo toca em temas cruciais como a inspiração súbita e a dependência tecnológica, mas a exploração desses temas é superficial. Uma análise mais profunda sobre a natureza efémera da criatividade ou a luta dos escritores contra as limitações técnicas teria adicionado maior profundidade à narrativa.

“Lagartos de Madeira e Zinco” oferece um retrato imprescindível e evocativo, lembrando que, mesmo em meio à brutalidade da realidade, há uma beleza resiliente na luta pela identidade e pela justiça. Ao fim, a crónica nos exorta a valorizar as pequenas vitórias do cotidiano e a manter viva a chama da esperança e da resistência frente às transformações implacáveis do mundo moderno.

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