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Diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado é possível e necessário!

O Governo de Moçambique já fez muita coisa para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Já contratou empresas militares privadas (“mercenários”), recorreu a tropas estrangeiras, estabeleceu acordos com outros Estados para treinarem as Forças Armadas de Defesa de Moçambique, apoiou a criação e equipou milícias populares, e criou uma agência de desenvolvimento dedicada a conter o alastramento da guerra. Só há uma coisa que o Governo não faz e não deixa fazer: dialogar com os insurgentes.

Há muitos argumentos apresentados pelo Governo e pelos seus ideólogos para negar o diálogo como uma forma válida de resolução de conflito em Cabo Delgado. O mais comum de todos é o de que não se sabe com quem dialogar, pois “os insurgentes não têm rosto (um líder conhecido)”.

E já se ouviram vários outros argumentos. Um meu (antigo) professor no Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) afirmou, há dias, num debate público em Maputo, que não se pode sequer pensar no diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, pois os insurgentes são extremistas e não reconhecem a autoridade do Estado. Argumentou, também, que “o actual contexto internacional não é favorável ao diálogo com terroristas”, para além de que “os terroristas” têm presença em apenas alguns distritos de Cabo Delgado.

Um outro meu (antigo) professor na Escola Superior de Relações Internacionais (ESRI) da Universidade Joaquim Chissano (UJC), argumentou num seminário recente em que partilhámos painel, em Pretória, que “não podemos [nós, o Estado] dialogar com terroristas, porque não somos iguais”.

Os argumentos contra o diálogo têm o mérito que têm. Mas o que pretendo argumentar, neste texto opinativo, é que o diálogo é possível e necessário, para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Dificilmente se vai acabar com a guerra em Cabo Delgado sem que se tenha recorrido ao diálogo com as pessoas que promovem os ataques.

Escrevo este artigo a partir da vila de Mocímboa da Praia, a mesma que, entre Agosto de 2020 e Agosto de 2021, foi a capital dos insurgentes. Destruída, com sinais visíveis de guerra, a vila de Mocímboa da Praia voltou a ser habitada por civis, mas está longe de ser uma terra de paz.

A vila é guarnecida por centenas de militares e polícias ruandeses, e a população local diz, abertamente, que, caso os ruandeses se retirem de Mocímboa da Praia, também sairá da vila, pois não há garantia de segurança sem ruandeses.

A população da vila de Mocímboa da Praia vive sitiada. Não pode sair para os campos de produção situados a um raio de cerca de 10 quilómetros, pois não há segurança. Os insurgentes estão a habitar as matas e as ilhas ao redor, e estão infiltrados na vila. De todos a quem perguntei se a guerra já acabou, a resposta foi um categórico NÃO! O argumento principal é de que “esta é uma guerra promovida pelos filhos da casa e as causas que levaram os jovens a entrarem no mato ainda não foram resolvidas”.

É aqui onde o diálogo se revela necessário, pois pode ser uma ferramenta importante para abordar os factores de conflito a vários níveis. Quando se fala de diálogo em Cabo Delgado, muitos tendem a pensar imediatamente nas negociações entre o Governo e os insurgentes. Mas o diálogo não começa nem acaba aqui.

O diálogo pode consistir em os líderes locais legítimos – políticos, tradicionais, religiosos – discutirem as reivindicações da juventude e procurarem soluções pacíficas para disputas latentes e emergentes, quer entre membros da mesma comunidade quer entre comunidades.

Isto é relevante porque o conflito em Cabo Delgado é alimentado por factores internos. Desemprego, falta de oportunidades de formação técnica e superior para poder trabalhar nos projectos de exploração de gás e na função pública, e corrupção no acesso aos serviços públicos são algumas das causas apontadas pelos locais como tendo motivado a juventude a aderir aos grupos radicais islamistas (não confundir com islâmicos) que protagonizam ataques em Cabo Delgado.

Para serem bem-sucedidos, os grupos extremistas violentos precisam de que os membros das comunidades onde operam adiram à sua causa. O processo pelo qual os grupos extremistas mobilizam os membros da comunidade para aderirem à sua causa é a radicalização. Os jovens são geralmente os membros da comunidade mais vulneráveis a aderir a grupos extremistas violentos.

Moçambique rejeita dialogar com “terroristas”, mas por trás dos ataques “terroristas” existe toda uma panóplia de factores de pressão e de atracção que tornaram possível que as populações locais fossem mobilizadas, recrutadas, treinadas para realizar os ataques, e são esses factores que uma resposta puramente militar muito dificilmente conseguirá resolver. O diálogo pode ser um instrumento útil para abordar os factores de pressão e de atracção subjacentes à radicalização e ao recrutamento de indivíduos dentro das comunidades.

A segunda dimensão do diálogo é a que envolve efectivamente ou conduz a negociações entre o Governo e os insurgentes, com vista a pôr termo aos confrontos militares. Embora não existam muitos exemplos bem-sucedidos deste tipo de diálogo no continente africano, há registos da vontade de o fazer. Um exemplo é o Governo do Mali, que manifestou interesse em encetar um diálogo com o maior grupo jihadista do país, o Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), para pôr termo ao seu conflito.
Para o caso de Cabo Delgado, existem iniciativas regionais (Peacemaking Advisory Group – PAG – baseado na África do Sul) e internacionais (caso da Advisory Group – DAG, baseado em Amsterdão) que têm como objectivo utilizar o diálogo para resolver o conflito em Cabo Delgado.

Todavia, o Governo moçambicano mostra pouca abertura para apoiar iniciativas de diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, o que compromete o sucesso das iniciativas de diálogo.

As iniciativas de diálogo existentes poderiam trabalhar na componente de diálogo entre o Governo e os insurgentes e poderia também trabalhar no sentido de facilitar o diálogo entre as comunidades e o Governo.

O Governo de Moçambique devia apoiar e criar condições para o trabalho das iniciativas de diálogo para a resolução de conflitos existentes, incluindo permitir-lhes o contacto com os insurgentes. Além disso, o Governo devia estar aberto a ouvir opiniões de especialistas sobre os possíveis factores de conflito e abordagens holísticas para a resolução de conflitos. É possível negociar com os insurgentes, basta o Governo querer!

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