– … Não bebo mais traçadinho…
Sempre tomei uma casa como mais que o lugar onde tenho as minhas tralhas guardadas e me escondo dos males da noite para me deitar e te encontrar no calor dos sonhos nos quais continuas a sussurrar-me as delícias de uma paixão ainda não vivida. Levo muito tempo para adaptar-me a um tecto novo.
Enquanto eu não for a casa, meu sangue é um cubo de gelo sem um copo de whisky onde se possa dissolver. O chão daquele prédio sempre será o amante dos meus pés nesta Lisboa que agora desperta, mais uma vez, para este Janeiro frígido. É muita coisa a acontecer em simultâneo, meu Deus!
– …Não volto mais àquela tasca. Não bebo mais traçadinho…
Ninguém esperava que o adeus se sucedesse daquela forma. Naquele dia tinha me levantado um pouco mais cedo que o habitual, no dia anterior fiquei de ir à biblioteca fazer pesquisas. Mas naquela semana não houve tempo para nenhuma pesquisa depois do que aconteceu. Era muita incerteza e desânimo!
– O prédio está a ser evacuado, todos para fora… – gritava uma voz que desesperada violentava os corredores. Sentado na escada exterior do prédio escuto a voz da dona Arminda que em pânico me diz que estou no lugar mais perigoso e que é melhor que eu desça rapidamente pois o prédio está a ser evacuado. Sem perceber com exactidão o que se estava a passar, embora com minhas desconfianças, fui ao quarto e todo atabalhoado meti o meu portátil na pasta, alguns livros e os meus dois cadernos azuis, onde ao longo do dia vou anotando minhas tontices. De seguida pus-me a andar. No corredor encontro mais pessoas a abandonarem o prédio, todas com semblantes incrédulos.
– … Vou me pirar de mansinho. Não volto mais àquela tasca.
Não bebo mais traçadinho- Estes gajos não têm o que fazer! São 5 da manhã, faz um briol do caraças e o que eles me fazem é estar em frente ao meu quarto nesta cantoria!
Todas com semblantes incrédulos. Já no exterior do edifício vejo 3 carros de bombeiros perfilados e muitos curiosos que procuram perceber o que se passa no número 89 da Rua Tomás Ribeiro! Ao longo do período de vigília houve quem me perguntou se havia uma bomba por ali e pensei esta deve andar a ver muita notícia sobre o Médio Oriente!
– Desta vez estou mesmo à rasca. Vou me pirar de mansinho. Não volto àquela tasca. Não bebo mais traçadinho.
Só no exterior consegui perceber que estávamos a ser evacuados porque o prédio estava em risco de derrocada por causa da obra ao lado. Em menos de 5 horas estávamos em todos canais de informação de Portugal e o pesadelo iniciava.
É assombroso ter consciência de que há milhares de pessoas a perderem suas casas no Centro e Norte de Moçambique, seja por causa da violência ou das catástrofes naturais, e nada poder fazer.
Lisboa está a cada dia a ficar mais moderna. Os edifícios do século passado vão sendo substituídos pelos novos. Naquela manhã o empreiteiro que está a construir no terreno ao lado do prédio no qual eu morava, ao fazer escavações muito profundas, bateu as fundações fazendo que se abrissem nele fissuras e deixar cair detritos. Os bombeiros e a Autoridade de Protecção Civil não viram outra solução senão nos manter longe do prédio enquanto avaliam as condições de habitabilidade dele. Pelos danos todos acreditam que não voltaremos àquele prédio.
Assim abandonei o primeiro bairro no qual vivi na Europa, Picoas! As duas últimas semanas que antecedem este texto foram muito difíceis, desde a incerteza sobre o local onde moraria e a exígua probabilidade que havia de rever as coisas que tinha deixado no edifício.
– Não bebo mais traçadinho… – Para além do ruído do eléctrico a raspar a estrada, tenho de ouvir a cantoria dos bêbados que frequentam os bares e discotecas que são meus novos vizinhos aqui no Príncipe Real. E por falar nisso, dá-me licença, estes gajos não se vão calar antes que alguém lhes deite um balde de água abaixo:
– Desta vez estou mesmo à rasca. Vou me pirar de mansinho. Não volto mais àquela tasca. Não bebo mais…