O País – A verdade como notícia

Deslocados vendem donativos para construir suas casas em Marokani

Uma boa parte dos sobreviventes dos ataques terroristas que vivem no centro de reassentamento de Marokani, no distrito de Ancuabe, zona centro da província de Cabo Delgado, estão a vender os donativos que recebem do Governo e das organizações humanitárias para conseguir dinheiro para a construção das suas casas definitivas.

A situação foi confirmada pelo jornal “O PAÍS”, que esteve na nova aldeia de deslocados para confrontar as recentes declarações do presidente da Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte, Armindo Ngunga, que anunciou a construção de cerca de oitocentas casas para as vítimas do terrorismo, reassentadas em Ancuabe.

“Desde que cheguei a Marokani, nunca recebi apoio em material de construção, nem zinco, barrote e paus, não recebi nada, se não uma lona, onde vivo com minhas três netas. Quem vai ajudar uma velha como eu?!”, reclamou Latifa Sumail, uma idosa de 80 anos de idade que perdeu o seu marido, vítima de doença, pouco depois de ter chegado a Marokani.

Entretanto, devido ao incumprimento de algumas promessas feitas pelo Governo, e com a falta de apoio na área de habitação, a maior parte dos deslocados continua a viver em barracas improvisadas, cobertas de lonas distribuídas pelo Governo e organizações humanitárias, e as poucas pessoas que já têm casas melhoradas construíram com meios próprios.

“O Governo orientou-nos a construir pessoalmente as nossas casas e que deviam ser resilientes , apenas prometeu alocação de uma viatura para o transporte de paus e bambus, das matas para aldeia, e oferta de barrotes e chapas de zinco, mas, até hoje, nem uma nem outra coisa recebi. Como eu e minha família estamos a viver há quase um ano, decidi construir sozinho a minha casa”, contou Adamo Anlaui, um deslocado de 65 anos de idade que fugiu da aldeia Ulo, distrito de Mocímboa da Praia, com a sua esposa, filhos e netos.

Sem meios de sobrevivência, Anlaui foi obrigado a encontrar uma alternativa para recomeçar a sua vida e voltar a sonhar com o futuro.

Segundo explicou a fonte, “além da mata estar muito longe da aldeia, eu estou velho e não consigo cortar e transportar paus e bambus, muito menos construir, tive que desviar uma parte do donativo que recebo para construir a minha casa”.

Para aquisição de material e construção da sua casa, alguns deslocados estão a vender comida e a utilizar parte do valor monetário que recebem como ajuda humanitária.

“Quando recebo um saco de arroz, metade fica para a família e a outra vendo para comprar paus, que custam entre 20 a 30 meticais cada, e um molho de dez bambus compridos custa cento e cinquenta meticais. Gastei cerca de sete mil meticais apenas para a aquisição de material de construção, incluindo cordas. E agora tenho que me alimentar com matabicho e almoço para as pessoas que estão a ajudar-me a construir as casas, enquanto vou procurando  mais dois mil e quinhentos meticais para pagar como mão-de-obra”, disse Adamo Anlaui, deslocado que espera cobrir com chapas de zinco prometidas pelo Governo.

A falta de cobertura das casas já concluídas está a deixar preocupados alguns deslocados, que prevêem problemas na próxima época chuvosa.

“Conclui a minha casa há cerca de três meses e estou a ver pessoas que terminaram depois de mim a receber material de cobertura, porque pagam aos chefes duzentos a quinhentos meticais para se beneficiarem do apoio e, assim, estou muito preocupada, porque estou a ver que, depois de tanto esforço, a minha casa poderá ficar destruída na próxima época chuvosa, uma vez que as paredes são de argila e não pode estar em contacto com água”, lamentou Muazire Falume

Entretanto, mesmo os poucos deslocados que se beneficiaram de cerca de sessenta barrotes e cinquenta chapas de zinco por cada família estão a enfrentar dificuldade para cobrir as suas casas devido à falta de dinheiro para pagar a mão-de-obra.

‘’Só recebi barrotes e zincos, e agora estou à procura de dinheiro para custear as despesas para a cobertura, que custa entre cinco a seis mil meticais, Se até para comer ainda precisamos de ajuda, onde vamos arranjar dinheiro para pagar a mão-de-obra?!”, questionou Mwatutu Abdulremane, uma mulher deslocada de Marokani que fugiu do distrito de Macomia há cerca de um ano.

Actualmente, segundo apurou “O PAÍS”, apenas cinquenta e cinco, das cerca de novecentas e cinquenta famílias em Marokani, vivem em casas melhoradas, que foram construídas pelos próprios deslocados, tendo apenas recebido ajuda do Governo em material de cobertura.

“Conseguimos contruir quinhentas e quarenta casas, mas apenas cinquenta e cinco estão cobertas com chapas de zinco oferecidas pelo Governo que prometeu ajudar todas as famílias de Marokani com material de cobertura”, confirmou Agostinho Abudo, chefe do Centro de Marokani.

 

 FOME EM MAROKANI

Entretanto, além de habitação, os deslocados que vivem em Marokani estão a passar situações de fome, devido à insuficiência da quantidade dos alimentos que recebem do Governo e das organizações humanitárias e a irregularidade na distribuição da ajuda humanitária.

“Quando chegamos aqui, em Marokani, recebíamos, mensalmente, ajuda em comida quase todos os meses, mas, agora, recebemos cinquenta quilogramas de arroz, dez quilos de feijão ou ervilha e cinco de litros de óleo para uma família de dez pessoas e para um período de dois meses”, explicou Batul Buanamade, uma deslocada que vive com os seus sete filhos e o seu marido que, desde que abandonaram o distrito de Macomia, onde era pescador, ainda não conseguiu encontrar alternativa de sobrevivência em Marokani, uma zona que fica longe do mar.

Outra preocupação dos deslocados está relacionada com o suposto desvio de donativos, que o Governo e as organizações humanitárias têm disponibilizado para as vítimas do terrorismo.

“Sempre que vem ajuda aqui, em Marokani, os chefes desviam e escolhem os seus familiares e amigos para oferecer os produtos. Uma vez trouxeram cabritos, desviaram, Depois trouxeram fardos de roupa usada e voltaram distribuir entre si ali, no posto policial, mais tarde vimos galinhas, eram cerca de mil, e eu voltei a não receber e vi outras pessoas a levar cerca de 50, só para uma família”, denunciou Mussa Mwinde, outro deslocado que escapou dos ataques terroristas quando o grupo armado invadiu aldeia Naunde, no distrito de Macomia.

As  autoridades do Centro de Reassentamento de Marokani negam que haja desvios de donativos e discriminação no processo de distribuição, mas compreendem a preocupação dos deslocados.

“É normal a população pensar que há desvio de donativos, porque somos muitos aqui, e a ajuda que recebemos, além de ser irregular, não chega para todos. E, sendo assim, temos de fazer uma espécie de escala. Uma vez recebem uns e na outra oportunidade são beneficiados os outros, assim sucessivamente”, justificou Agostinho Abudo, chefe do centro de Marokani.

 

FALTA DE MEDICAMENTOS NO POSTO DE SAÚDE DE MAROKANI

Os deslocados, que vivem no Centro de Reassentamento de Marokani, queixam-se da falta de uma unidade sanitária condigna e constantes rupturas de stocks de medicamentos no posto de saúde local.

“Quase sempre, vamos aos postos de saúde, mas não há medicamentos. Quando estamos doentes, temos que correr para lá, porque, em caso de demora, não encontramos medicamentos”, disse Domingos Anli, um deslocado de Marokani.

Além de ruptura de stocks de medicamentos, os deslocados queixam-se da falta de alguns serviços considerados essenciais, como uma maternidade e uma sala para internamento.

“As mulheres grávidas têm que ir ao centro de Saúde de Metoro, a cerca de trinta quilómetros daqui, e sofremos muito, porque lá é difícil ter ajuda e companhia dos familiares”, reclamou Zura Bacar, uma jovem deslocada de dezoito anos de idade, que teve o seu primeiro bebé em Marokani.

Para além da falta de medicamentos, o posto de saúde não possui alguns instrumentos básicos necessários para o atendimento dos pacientes.

“Temos tido falta de medicamentos, principalmente para o tratamento de infecções de transmissão sexual, como sífilis, antibióticos para infecções respiratórias. Mas também não temos balanças para crianças e adultos e outros meios de diagnóstico de doenças”, revelou Ruth Bucu, uma enfermeira de saúde materno-infantil, a única técnica de saúde afecta ao posto de Marokani, onde está ao serviço da Associação Moçambicana de Desenvolvimento da Família (AMODEFA).

Malária, diarreia, infecções de transmissão sexual, respiratórias e anemia são as doenças mais frequentes registadas no posto de saúde de Marokani, uma unidade sanitária que atende cerca de cem pacientes por dia, entre deslocados e população das aldeias vizinhas.

Com cerca de cinco mil pessoas, de um total de novecentas e cinquenta famílias, o centro de reassentamento de sobreviventes dos ataques terroristas de Marokani fica a cerca de 150 quilómetros da cidade de Pemba, a capital de Cabo Delgado.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos