Surgiu Lurdes Mutola e com ela o atletismo moçambicano brilhou no mundo, ficando a ideia de que se tratava do resultado do nosso trabalho de base. Dirigentes da modalidade, e não só, passaram a acompanhar a Menina de Ouro pelo mundo, exibindo uns galões cujo mérito não lhes pertencia. O “meteoro”, após duas décadas em que (per)correu o mundo a correr, encerrou a sua carreira. Hoje assiste-se à queda-livre do atletismo. E o reerguer não se afigura fácil, pois a apetência, sobretudo nos subúrbios, mesmo em datas festivas, é cada vez menor.
Para muitos, o atletismo é uma modalidade-base, pois a partir da corrida e dos saltos, o atleta fica capacitado para brilhar noutros desportos. Nos Jogos Olímpicos, é a chamada a modalidade-raínha.
E qual é, na realidade, o ponto de situação do atletismo, considerado desporto prioritário no nosso país?
“RANKINGS” NÃO MENTEM
A maior parte dos nossos recordes nacionais, têm “barbas brancas”. E os que não têm pela duração, têm pela desactualização, quando comparados às marcas – mesmo as mínimas – que se exigem nas competições internacionais, no Continente Africano e no Mundo. Pode referir-se, sem qualquer margem de exagero, que as estrelas mundiais das várias especialidades, chegam aos nossos recordes, mesmo sem tirarem os fatos de treino.
E se os números valem para alguma coisa, basta dizer que a maioria dos nossos máximos, ultrapassadíssimos, não chegam para passar as primeiras eliminatórias em Jogos Olímpicos ou Campeonatos Mundiais.
Vejamos alguns exemplos:
– O recorde nacional mais antigo, é o do lançamento do martelo. Tem 57 anos e pertence a Octávio Vicente, com 46.51 metros.
– Segue-se o da maratona, prova de 42 km, em que a melhor marca de sempre pertence a António Repinga, com 2 horas 38 minutos e 32 segundos. Foi obtido em 1964, portanto há 55 anos.
– Cândido Coelho, com 4 metros, ainda detêm o recorde do salto à vara, datado de Abril de 1974, portanto há 45 anos.
Note-se que muitos dos máximos que ainda vigoram, foram obtidos com antiquados sapatos de pregos, em pista de cinza e não em tartan!
Uma consulta à lista dos máximos do atletismo nacional, traz à tona o seguinte facto: à excepção dos melhores tempos de Lurdes Mutola – que detêm 9 recordes nacionais, alguns deles africanos – todos os outros não têm qualquer cotação internacional. Veja-se o salto em altura em que o máximo nacional, de Chambal, está a quase meio metro de distância do recorde mundial de Sottomayor, um cubano que saltou 2 metros e 45 centímetros! Salvo raras excepções, as nossas melhores marcas masculinas ficam aquém dos melhores tempos mundiais… femininos!
DE DESPORTO-BASE A MODALIDADE ESQUECIDA
Na década 70, corria-se, saltava-se e lançava-se aos fins-de-semana, nas pistas do Sporting de LM, Desportivo e Parque dos Continuadores. As entradas, pagas, tinham um público fiel. Os treinos eram diários e o número de atletas crescia no defeso do futebol, pois o atletismo ajudava os jogadores a melhorarem as suas “performances” para o desporto-rei.
Ferroviário, Sporting e Desportivo, eram os rivais, com departamentos organizados, dirigentes e treinadores dedicados e experientes, como eram os casos do Professor Vilela, Luís Revez e António Matos.
Um facto que se perdeu nos últimos tempos, é o da “obrigatoriedade” que havia relativamente aos corta-matos e às corridas de estrada, nas datas festivas: Légua do Natal, que partia do mini-golf até ao campo do Maxaquene e Légua 24 de Julho, em toda aquela avenida eram, entre outras, provas tradicionais do calendário.
Federados e populares, com objectivos e classificações diferentes, corriam, confraternizavam e interiorizavam a necessidade de praticarem e acompanharem um dos desportos mais saudáveis que se (re)conhece.
E que se não pense que os estrangeiros convidados – suázis, tanzanianos e sul-africanos – vinham apenas passear a sua classe e arrebatar os principais prémios. Nada disso: fundistas como Repinga, Francisco Ducodo, Archer Fausto, Pedro Mulomo, Luís Cossa e outros, eram do melhor que havia, “clientes assíduos” da selecção do então espaço português.
CORRER É SAÚDE
Bela iniciativa da então Direcção Nacional dos Desportos, prova regular, que enquadrava vários escalões etários. Uma iniciativa salutar, que virou vício.
Nas escolas e nos espaços dos subúrbios, havia grande movimentação e interesse de todos, em se candidatarem ao prémio que era, invariavelmente, um rádio Xirico. Pode dizer-se que o país corria, pois a semente lançada na capital, facilmente se espalhava por outras cidades e zonas rurais.
Um regalo e, certamente, algo a reeditar.
Com custos mínimos, obtinham-se resultados espantosos, muito particularmente para a saúde.
ATLETISMO NÃO GALVANIZA POR CAUSA DO CRONÓMETRO?
Para se gostar do atletismo, é preciso algum conhecimento. Ver um atleta a correr e saltar, sem saber o que isso representa, pode não ser atraente. Não é a mesma coisa que reclamar um golo, ou um penalti.
O atletismo tem um patrão: o cronómetro. Bem mais exigente que o vídeo-árbitro, pois define os vencedores, por vezes com diferenças de décimos e centésimos de segundo.
As técnicas e a elegância nos saltos, as particularidades nas corridas de barreiras e obstáculos, os pormenores tácticos no meio-fundo e fundo, a “explosão” nos 100 e 200 metros, tudo isso exige algum conhecimento para criar paixão.
Mas a beleza vem da multiplicidade e variedade de gestos, técnicas e movimentos, que dependem de um treinamento sério e grande concentração nos momentos decisivos. Ao contrário do futebol, há pouco espaço para culpar colegas ou juízes, por um passe mal feito ou um golo anulado.
Quénia e Etiópia: capitais do meio-fundo e fundo
Foram, desde sempre, líderes e por isso podem ser consideradas capitais mundiais do meio-fundo e fundo: Quénia e Etiópia. Grande parte dos campeões e recordistas, são provenientes daqueles países ou dos limítrofes. Há razões relacionadas com a altitude e a alimentação tradicional, que explicam em parte o sucesso.
Porém, nos tempos em que vivemos, à tradição de correr pelas montanhas, juntam-se as vantagens que os grandes campeões desfrutam e exibem, ao ponto de até os treinos de atletismo serem, naquelas paragens, assistidos por milhares de pessoas. Lá, o atletismo é a modalidade prioritária. Com ele sonham milhares de jovens, com o apoio de pais e governantes.
Etíopes e quenianos, em masculinos e femininos, são presença obrigatória nas maiores corridas de estrada do mundo. Em regra, alternam entre si as posições cimeiras, reduzindo o sonho dos europeus ou americanos a apenas tentarem conseguir uma “infiltração” entre o que chamam de armada africana!
Em Moçambique, fala-se de Manica e Niassa, como sendo zonas com altitude favorável ao surgimento de jovens com propensão para as corridas de meio-fundo e fundo. Os Jogos Escolares têm confirmado essa tendência nata. O que falta? Investimento sério e actualizado!
Lurdes, Magalhães e Cândido os atletas do século!
Lurdes foi a figura maior, tendo beneficiado de um longo e frutuoso estágio nos Estados Unidos. O governo moçambicano distinguiu-a com atleta do Século, juntamente com José Magalhães e Cândido Coelho, que chegaram a ser os melhores da Península Ibérica, isto é de Portugal e Espanha.
Logo a seguir, perfila-se António Repinga, um fundista sem paralelo. Abdul Ismail e Magid Osman, nos 110 barreiras, Stélio Craveirinha, António Fernandes, Vítor Pinho, Lucrécia Cumba Argentina da Glória e Ludovina Oliveira, merecem ser mencionados.
Surpresa? Mário Esteves Coluna, o Monstro Sagrado, que nos anos 60, antes de abraçar o profissionalismo no futebol, foi campeão e recordista do salto em altura, além de ter vencido muitas provas de meio-fundo.