O País – A verdade como notícia

De Próspero a Caliban

Ao F. Noa,

pela visão

 

Estive na Ilha. Na Ilha de Moçambique, esse paraíso histórico,  espaço de pedra que tem encantado Poetas, estudiosos e turistas. Estive lá há uns meses, Junho precisamente, com os Professores de Literatura, o decano Lourenço de Rosário, encantando e decantando Camões,  afirmando, no alto da sua merecida cátedra,  que a ilha dos amores nos Lusíadas é a nossa ilha de Moçambique, e o incontornável Professor Francisco Noa, ex-reitor da UniLúrio, escalpelizando Poetas que aportaram, física e imaginariamente, a Ilha de Próspero, titulo de um dos mais belos livros do nosso grande Poeta Rui Knopfli, de quem retiro, com o devido respeito, o poema Muipiti:

“Ilha, velha ilha, metal remanchado,/ minha paixão  adolescente, / que doloridas lembranças   do/ tempo/ em que, do alto do minarete, / Alah -grande sacana! – sorria/ aos tímidos  versos bem/ comportados/ que eu te fazia./  Eis-te, cartaz, convertida  em puta/ histórica,/ minha pachacha pseudo-oriental/ a rescender a canela e açafrão,/ maquilhada de espesso m’siro/ e a mimar, pró turismo labrego, /trejeitos torpes de cortesã/ decrépita. /  Meu Sitting Bull de carapinha e/  cofió,/têm-te de cócoras na sopa/ melancólica/ de uma arena limosa e marinha,/ gaivota tonta a adejar  inutilmente/ ao lume  de água contra  a amarra/ que te cinge  para sempre/ ao bojo ventrudo do continente. /  De teu, cultivam-te a vénia e a/submissão/ solícitas, trazidas nos pangaios/ lá  do distante Katiavar, / expondo-te  apenas  no que tens de / vil,/ razão talvez para que ao longe, de/ troça,/ piquem  mortiças  as luzes  do/ Mossuril / ou sangre no meu peito esta/ mágoa incurável./ Mas retorno devagarinho as tuas/ ruas vagarosas,/ caminhos  sempre abertos para o/ mar,/ brancos e amarelos filigranados/ de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou mussulmana?)/ durando  no ar,/ no sangue, ou no modo oblíquo/ como o sol/   tomba sobre as coisas ferindo-as/ de mansinho/ com a luz da eternidade./   Primeiro a ternura da mão  que/ modelou/ esta parede emprestando-lhe  a/ curva hesitante/ de uma carícia  tosca mas/ porfiada,/ logo o cheiro a sândalo, o/ madeiramento/ corroído da porta  súbito/ entreaberta,/ o refulgir da prata na sombra  mais/ densa:assim descubro, subtil e cúmplice,/ que a dura linha do teu perfil/  autêntico/ te vai, aos poucos, fissurando a/ máscara.”

A Ilha nunca fora,  desde a minha iniciação literária, lá  vão  trinta e tal anos, preocupação  maior. Dito de outra forma: nunca me preocupei, como muitos, em conhece-la com estrepitosa ansiedade. Sempre soube que a ilha não  soçobraria, não se perderia, tal como a mítica Atlântida, nas profundezas do Índico, em resultado, nos hodiernos tempos, das mudanças climáticas. Sabia que quando a visitasse as pedras estariam lá, falando com outros personagens, desafiando outros tempos históricos,  mesmo que a encontrasse no estado que Rui Knopfli descreveu no poema Padrão: “ Uma humidade escura e pegajosa/ alastrará  de novo/ sobre o teu dorso de brancos e/ amarelos, desenhando/ nele estranhos, esquálidos/ arquipélagos fantásticos. / A gangrena e a lepra do tempo/ minarão/ encarniçadamente o teu/ arcaboiço  atarracado,/ modelando-se à  imagem e/semelhança do bizarro/ solo osteoporoso em que-/ memória  cristalizada/-repousas entorpecida de mar e ausência,/ esmerilado e exato monumento/ à  vã  cobiça,/ aos erros graves e à grandeza/ desmedida que os gerou./ Sob a metálica indiferença de um/ céu anil,/porto de olvido  na rota perdida/ das Índias, / volverás  assim um ressentimento de areia,/ soluço de pedra ao sabor da/ monção.”

A minha preocupação  esteve num outro Moçambique, o Moçambique  profundo. Sabia que lá  não  encontraria as pedras que carregam a memória  dos tempos, mas um espaço volátil  ao tempo e a memória  presente. Sabia que precisava beber essa multiplicidade de vozes e culturas que se entrelaçam no espaço nação. E deixei-me, simultaneamente, deslumbrar e assombrar com o culto nyau, da longínqua Angónia, com a graciosidade da dança Nganda, executada pelos nyanjas, em vistosas vestes brancas, lembrando marinheiros de outros tempos, cortando as águas do grandioso lago Niassa; deixei-me levar pelo encanto do tufo, maravilhosamente  executado pelas sensuais macuas, vestidas  com o rigor que a capulana exige perante a ocasião, e o atemorizante mapiko dos macondes, executado com energia e elegância. E, mais a sul, nas vastas planuras de Gaza,  assisti o vigor do xigubo, dança guerreira, lembrando os áureos tempos do Mfecane – a diáspora nguni, movimento guerreiro que redefiniu o mapa geográfico e politico da África austral no primeiro quartel do século XIX. E depois a culinária, os sabores de Inhambane com a sua característica matapa, a xima branca dos senas, acompanhada do  thépwé (camarão  miúdo), o cabrito de tete, nobremente   chamado, num dos  seus singulares pratos, de khongué, a internacional galinha à zambeziana, e outros sabores como a xiguinha, preparado à  base de mandioca ou batata doce, e a mboa, à base das folhas de abóbora, meu caril predilecto. Interessei-me por este Moçambique, por estes valores, e pelo modo de estar  e ser do makonde, ajaua, lomué, nhungué,  matsua,  chope e ronga, entre outros  grupos etnolinguísticos. De longe ouvia falar da ilha, do dinheiro doado à sua conservação, da elevação a património mundial da Unesco, em 1991, do delírio de estrangeiros e nacionais que a visitavam, e do espanto de todos quando eu dizia, com certa ironia, que nunca a visitara. Senti, com certa desolação, na infundada incredulidade dos que me questionavam, que o Moçambique real, o território profundo, pouco os preocupava, pois preferiam ater-se ao património edificado, ao legado colonial, às seculares pedras, à parte visível, à superfície facilmente tragável, olvidando o que de significativo existe à identidade nacional. Tal perspetiva teve o respaldo da UNESCO, quando, em 1972, adoptou a Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural – o património  edificado. As grandes políticas de conservação centraram-se no património  edificado. De 1978 até  aos tempos de hoje, várias somas de dinheiro foram drenadas para a conservação do património edificado da Ilha de Moçambique. Os cultores de Direito têm uma expressão  traduzida do latim que diz: “se é  lícito o mais, será lícito o menos.” O menos que é o mais na nossa realidade cultural foi obliterado.

E só em 2003, a 17 de Outubro, é que a UNESCO aprovou a convenção para a salvaguarda do Património Cultural Imaterial, entendido como “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões, bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados.”

É o que o continente africano sempre precisou: a salvaguarda do imenso património cultural imaterial. Foi esse património que me impeliu (impulso mais emotivo que consciente, pois esta, a consciência, foi emergindo paulatinamente) a afastar-me das pedras que falam e a  imergir  no Moçambique profundo, procurando conhecer e assumir a diversidade cultural deste vasto país.

E só neste ano de 2024, e a propósito dos 500 anos de nascimento do poeta  Camões, Luiz Vaz, de nome, aceitei visitar a Ilha. Sabia que nada abalaria as minhas raízes, alicerçadas no vasto património imaterial, ao me confrontar com as seculares vozes  árabes, indianas e cristãs, impregnadas nas  pedras  e muros e frontarias e pórticos corroídos pelo tempo. Daí não  me ter  espantado com a  sonolenta beleza da ilha, e muito menos com o distanciamento dos naturais da mesma, em relação ao  património  de pedra, pois estes mantêm-se, há  séculos, no seu makuti (casas maticadas – hoje muitas delas cimentadas -, com cobertura de folhas de palmeira), em bairros circundantes aos edifícios de pedra. Ao passear por esses populosos bairros, apinhados de crianças  carentes, choros inquietantes, rostos expectantes, veio-me à  mente  o incontornável poema de Knopfli:  Canção de Ariel – “ esquálidos  vultos aracnídeos,/ escorre-lhes a condoída  mágoa / ao longo dos magros ombros./ Assim imóveis e mudos, cravados/nos muros, nas pedras, na paisagem/ dão costas  à Terra Firme,/ cujo rumor, surdos, ignoram./ Perde-se-lhes no longo do mar,/ entre irisados reflexos e sugestões da areia,/ o melancólico resignado olhar./ Que oculto fascínio, secreto ópio,/ da baixa  coralina os atrai?/ Que vozes entorpecentes surdidas/ do abismo estarão  ouvindo?/ O tumulto que sobe do continente/ não os inquieta ou contagia,/ em seus rostos não há  sinal,/ centelha ou fulgor do incêndio / que, no horizonte próximo, lavra./ Imóveis  e antigos, fitam o mar./ Não são  estes os filhos de Caliban.” E na verdade não são, pois a canção de Ariel não os faz sonhar porque distantes da realidade de pedra, das “vozes entorpecentes surdidas/ do abismo.” Preocupam-se com as carências  do dia a dia, com as ilusões difundidas da distante capital desconhecida. Mas por outro lado, na outra face da moeda, senti na ilha que visitei, a assumpção de outra  vibração, outra pulsação, às canções  de Ariel, surdindo, como diz o Poeta, das profundezas do mar.

Com a criação  da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em 2017, durante o consulado de Francisco Noa, como Reitor da Universidade de lúrio, a ilha começou  a mudar de paradigma. Hoje, por toda a ilha, estudantes universitários dão  outra vida ao espaço.  É impressionante a dinâmica  que se entranha  na zona de pedra. O nível de literacia tende a crescer.

E foi com agradável surpresa que depois de um sarau cultural no museu de S. Paulo, já  noite adentro, e meio perdidos no emaranhado de ruelas, um jovem indicou-nos as verdadeiras quelhas e travessas do nosso destino. E por entre a conversa sobre o dia cultural promovido pela Faculdade, perguntamos ao jovem estudante de 16 anos, de nome Esmel – fazendo lembrar esse fulgurante parágrafo inicial de Moby Dick, romance de Herman Melville: Call me Ishmael (suponhamos que me chamo Ismael)-, sobre perspectivas de futuro. E este, com uma serenidade desarmante, disse-nos:

– Quero ser Poeta!

– Poeta?, interrogamo-nos em silêncio.

– Sim, Poeta!

Entreolhamo-nos. Sabia que  por entre o silencioso sorriso no olhar esguio do antigo Reitor, estava  a certeza que a semente  lançada  na ilha  desabrochava: os filhos de Caliban estão  povoando a ilha.  Sonham com coisas belas, querem outra  geometria no traçado das travessas da Ilha. E o sinal da mudança reside tão somente naquilo que não queremos investir: educação.

A ilha quer outra perspectiva do poder Político. Senti, em muitos,  a ânsia de verem o edifício da Fortaleza de S. Sebastião a transformar-se num  espaço académico  e de lazer, onde os estudantes substituam o capim da incultura por livros e flores que indiciem um futuro que saiba reconciliar-se, sem mágoas, com o passado. Senti que os ilhéus  querem ser sujeitos e não objectos da sua História. E que  Ariel,  personagem da famosa peça de Shakespeare, a Tempestade, ganhe a verdadeira dimensão metafórica no memorável poema do grande e esquecido Rui Knopfli, Poeta que cantou, mais do que ninguém,  a Ilha de  Moçambique.

E de sabores, permitam-me que termine assim o texto, ficou-me o siri siri, prato típico da Ilha que rivaliza com os melhores da nossa rica culinária.

Maputo, 2024.

 

 

 

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