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De Nampula para além do Índico: a crónica de um homem apegado à terra

No princípio da década 20 do século passado, o pai de Marcelino é transferido de Lourenço Marques – pela empresa Caminhos de Ferro, na qual desempenhava a função de torneiro mecânico – para Nampula. Nessa viagem para o norte de Moçambique, Firmino dos Santos levou consigo a esposa, Teresa dos Santos, grávida de Leonilde, filha mais velha do casal. 

Assim, foram ambos parar em Lumbo. Além de Leonilde, o casal com raízes na Catembe teve mais cinco filhos, nomeadamente, Vítor, Guilherme, Marcelino – que viu a luz do dia, pela primeira vez, às 07h00 de 20 de Maio de 1929 –, Elvis e Sabina.

Destes, o que mais dava trabalho era Marcelino, que gostava de brincar e jogar à bola até altas horas, desobedecendo a vontade dos pais de terem os filhos recolhidos em casa e com banho feito mesmo antes do pôr-do-sol. Esses repentinos desaparecimentos custavam-lhe, quando regressasse, uns bons tabefes da mãe, que o protegia muito na mesma proporção que o educava à palmada, nas circunstâncias em que se desviava.

Numa delas, depois de garantir à irmã mais nova que era capaz de pescar, nas brincadeiras inconsequentes, lançou-lhe um anzol que a deixou com uma eterna cicatriz num dos pés. Até hoje, Sabina tem a marca que valeu uma boa tareia ao seu mano, desde cedo, muito protector. 

A família Dos Santos viveu no Lumbo mais ou menos uma década. Decidiu regressar a Lourenço Marques à medida que os filhos avançavam no nível de escolaridade. Assim, Firmino tratou da transferência para a capital moçambicana, onde passou a ter machambas, das quais garantia parte do consumo doméstico. Nesse regresso, Marcelino encontrava-se a meio do terceiro ano de escolaridade e, na capital da colónia, estudou na Paiva Manso, agora Escola Primária Completa do Alto -Maé, bem próximo ao Quartel-general.

A seguir, na mesma avenida, hoje 24 de Julho, foi concluir o curso industrial no actual Instituto Industrial 1º de Maio, afinal, o seu grande sonho era tornar-se engenheiro electrotécnico. 
Na meninice, à imagem dos irmãos, tornou-se adepto do Ferroviário, por influência do pai, que chegou a ser sócio da “locomotiva” de Lourenço Marques. Ainda assim, as circunstâncias conspiraram para que Marcelino fosse atleta do 1º de Maio, mesmo a condizer com os ideais socialistas que mais tarde iria defender com muita convicção.

O desporto também veio a ser sua paixão, com destaque para o futebol, atletismo e ténis. Ao terminar a escola em Lourenço Marques, o único filho de Firmino e Teresa dos Santos que quis estudar na Europa partiu para cursar Engenharia em Lisboa, onde chegou a 5 de Outubro de 1947. À sua espera, para o receber, estava o primo Luís do Amaral, que se encontrava a estudar no Instituto Industrial. 

Na mesma data, Marcelino conheceu um eterno amigo, como ele, grande revolucionário: Amílcar Cabral, que se formava em Agronomia. Foi o primo quem o apresentou ao cabo-verdiano, na Casa dos Estudantes do Império. Marcelino tornou-se muito próximo de Cabral, tanto que lhe deu hospedagem no quarto humilde que alugava na avenida Casal Ribeiro, número 1, em Setembro de 1949. Nesse ano, o lar partilhado pelos dois estudantes africanos era constituído por duas camas, duas mesas, um guarda-fato e três cadeiras. Os livros e cadernos ficavam espalhados por toda a parte, inclusive no chão.

Em Portugal, o estudante moçambicano viveu no bairro de Campo de Ourique, bem próximo à Casa de África, criada na década de 20, segundo Oleg Ignatiev, por um grupo de intelectuais africanos que tinha vivido naquele país. Se a Casa dos Estudantes do Império era frequentada por estudantes, a de África servia para todos os africanos, independentemente da profissão, portanto, era mais abrangente.

Enquanto esteve a estudar no Instituto Superior Técnico, diferentemente dos seus amigos, em Portugal Marcelino esteve a estudar sem ser bolsista. 

Os pais pagavam-lhe as contas da escola e as despesas da casa. Além de Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos fez grande amizade com os angolanos Mário de Andrade e Agostinho Neto, com quem se envolveu em recitais de poesia, no número 37 da rua Actor Vale, em Lisboa. Com estes dois amigos, Marcelino foi detido por dois dias, a 11 de Novembro de 1950, em Caxias, sob acusação de participação em actividades consideradas ilícitas, como afixar cartazes subversivos nas paredes lisboetas à noite. Tinha, na altura, 21 anos de idade e era o mais novo dos amigos. 

Cabral tinha 26 anos, Neto tinha 28 e Andrade tinha 22. Foi mais ou menos nessa época que o nacionalista moçambicano escreveu uma carta, de Portugal, para O brado africano, a anunciar a sua decisão de luta por um ideal, o de fazer de Moçambique uma terra para todos, além da cor e da dor que muitos separou. Uma das coisas que sempre o influenciaram, desde pequeno, foram as conversas com os mais velhos, casos de João Albasini e Estácio Dias. Mas tudo começou do berço, afinal, o carácter do pai valeu-lhe um reflexo do que sempre poderia ser depois de vencer os espinhos da vida.

Quatro anos depois de chegar a Portugal, farto da opressão enfrentada, Marcelino resolve transferir-se para França, em 1951, com o convite de ser coordenador entre o Movimento Estudantil Português e os países da Europa Oriental.

 

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