O País – A verdade como notícia

Produzir vídeo clipes e realizar pesquisas no país já não é preciso pagar taxas. A decisão foi anunciada pelo governo esta terça-feira que também reduziu custos de diversas actividades de produção audiovisual e cinema.

Com vista a incentivar, promover e proteger o desenvolvimento de actividades audiovisuais e cinematográficas no país, o Conselho de Ministros, reunido na sua 19ª sessão ordinária aprovou, esta terça-feira, a revisão do Decreto n.º 41/2017, de 04 de Agosto, sobre o Regulamento da Lei do Audiovisual e do Cinema.

Com efeito, o decreto revisto cria, fundamentalmente, condições para simplificar procedimentos inerentes ao licenciamento, em consonância com a implementação da directriz de desburocratização na Administração Pública em curso no país; torna o licenciamento electrónico célere e próximo ao cidadão; isenta as taxas de autorização para filmagem de vídeo clipes; reduz as taxas de cedência de excertos de imagens do arquivo nacional de filmes para produtoras nacionais e estrangeiras; isenta as taxas de pesquisa ou pré-produção de rodagem nacional e elimina a taxa de visionamento para as salas de cinema.

Para o Ministério da Cultura e Turismo, o decreto revisto representa um incremento no investimento público para a promoção da produção audiovisual e cinematográfica nacional, e encoraja o desenvolvimento da indústria musical.

O decreto ora aprovado resulta de um trabalho intenso de consulta aos principais intervenientes da cadeia de valor do audiovisual e cinema em todo território nacional e de consultas a especialistas internacionais dotados sobre a matéria.

Por: Jéssica Djedje

“A Mulher Sobressalente” é um conto da autoria de Dany Wambire, publicado no livro com o mesmo título, em 2018. Na história, o escritor demonstra como as práticas culturais, às vezes, ferem a dignidade do ser humano, sendo, neste caso, retratada a situação da mulher moçambicana em contextos rurais.

O autor narra a história de uma jovem, Quinita, que, à semelhança de muitas mulheres pobres do país, vai trabalhar como empregada doméstica na cidade, na esperança de, em paralelo, ir à escola. Porém, mais tarde, ela é levada de volta para a sua localidade, de modo a salvar o casamento da irmã mais velha, porque esta só tem meninas. Na casa da irmã, Quinita é abusada sexualmente pelo cunhado até engravidar e gerar um menino.

Atento ao que se passa no interior do seu país, Dany Wambire aborda questões como famílias disfuncionais, casamentos precoces, abuso sexual e o poder das tradições. Nesses aspectos, convém reparar a sequência em que o conto foi construído, começando por retratar a família e o lugar de socialização da protagonista.

Logo nos primeiros relatos, quando a mãe da personagem principal, Quinita, diz “o teu pai te quer como peça sobressalente da família”, percebe-se quais são as crenças em questão no enredo, e, mesmo com certa consciência de que algumas práticas são danosas, não se vislumbra, de todo, um confronto da narradora aos padrões culturais.

O facto de a narradora chamar a sua própria casa de “cela”, pode remeter a duas interpretações. Primeiro, à forma como as casas são construídas. Uma dependência com apenas uma janela minúscula, onde sequer há espaço suficiente para toda a família, sem privacidade. Segundo, às amarras psicológicas que são impostas pelo simples facto de se estar dentro de uma casa que condena os seus membros à prisão perpétua, sem oportunidades de defesa ou recurso.

A forma como Dany Wambire descreve a vida das mulheres leva a refletir sobre como o seu direito à escolha é retirado desde cedo em Moçambique. Elas são “vendidas” ao homem, que pode pagar mais, antes mesmo de sequer terem consciência de quem elas são. Além disso, “A mulher sobressalente” é um conto sobre aquelas que não podem ter acesso à educação formal, mesmo que queiram, porque têm de se casar assim que tiverem a menarca. É uma história sobre abusos sexuais às meninas, sem direito à denúncia por parte delas ou de outrem, para saldar dívidas familiares a diversos níveis, como se revela no seguinte excerto do pai de Quinita, dirigido ao genro: “dívida paga. Já não vou devolver nada do que me deste pelo lobolo da minha filha”.

O facto de o autor trazer duas visões contrárias, através da mãe e da irmã da protagonista, sobre como as relações entre mulheres podem se desenrolar, enriquece o drama no enredo. Por um lado, a mãe chora as dores da filha que terá o futuro roubado. Por outro lado, temos a irmã que fica indiferente às agressões e às perdas sofridas pela protagonista, em nome de interesses próprios.

Outro aspecto pertinente que Dany Wambire traz é o facto de, socialmente, a mulher ser considerada culpada pelos fracassos, enganos e desvios nas famílias. Um exemplo é: quando não se tem um varão depois de tantas tentativas, a culpa é da mulher, ainda que a Biologia explique sobre cromossomas XX e XY. Mas, como é que elas poderiam se defender dos excessos da tradição se são privadas de frequentar a escola?

O enredo descreve como é contraditório o significado da mulher na sociedade moçambicana. Se, por um lado, através dela casamentos podem ser salvos, dívidas podem ser pagas e presentes podem ser recebidos, por outro lado, elas são, ao mesmo tempo, a maldição de seus próprios casamentos e a causa de dívidas familiares.

Em termos de edição gráfica, há algumas inconsistências na fonte e no tamanho das letras, ao longo dos diálogos, o que fere a estética textual e as expectativas do leitor. O texto deveria (re)passar por uma revisão, de modo a colmatar erros gráficos e tornar a leitura mais aprazível, pois, como Stephen King refere, na obra Sobre a Escrita, “Os parágrafos são quase tão importantes em aparência quanto em conteúdo.”

De modo geral, o conto de Dany Wambire é uma história que coloca os leitores a reflectir sobre a cela que certas práticas culturais e/ou tradições podem representar.

 

*Texto escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.

 

Não se deve encarrar o facto de os partidos políticos estarem em pré-campanha como problema. A grande questão é o uso dos recursos do Estado para esses eventos. Esta ideia é partilhada pelos analistas Borges Nhamire e Hélder Jauana, que acrescentam que deve haver uma distinção clara do que é campanha e propaganda política.

Há dias, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) veio a público para declarar que existem partidos que estão em processo de campanha, mesmo fora do período estipulado pela lei.

Borges Nhamire diz que vários partidos políticos, sob diferentes pretextos, fizeram, de alguma forma, referência aos seus manifestos. Entretanto, a grande questão que se coloca é de onde são tirados os recursos para “as apresentações dos candidatos”.

“É tentar tapar o sol com a peneira dizer que os candidatos não farão campanhas antecipadamente. O mais problemático são os meios que eles usam, os recursos do Estado, sejam humanos ou materiais. Ter ali o Presidente da República a viajar, certamente, com os recursos do Estado, com a dispesa paga pelo Estado, com segurança do Estado, isso é problemático”, destaca Nhamire.

Para o analista Borges Nhamire, a CNE devia, como orgão de fiscalização do processo eleitoral, apresentar evidências de que o dinheiro usado por Daniel Chapo para viajar e apresentar-se aos militantes partidários pertence à Frelimo e não ao Estado.

Hélder Jauana, compartilhando do mesmo pensamento, acrescenta que a grande questão é o que está na norma de diferenciação entre o público e o privado. “Eu creio que a CNE e os orgãos de administração e gestão eleitoral devem prestar atenção a estes aspectos, como é que os partidos obtêm o dinheiro para as campanhas, qual foi a sua capacidade de financiamento e se houve uso de recursos públicos ou não”.

Quanto às campanhas, Jauana diz que não é uma novidade, pois “os partidos políticos vivem vendendo os seus manifestos”, e isso é feito em vários países. O analista diz que os orgãos de administração eleitoral devem prestar atenção em assuntos mais importantes, e ignorar “estes aspectos marginais”.

Borges Nhamire e Hélder Jauana defenderam as suas posicões esta segunda-feira, no programa Noite Informativa, da Stv Notícias.

Os grandes autores brasileiros do Sec. XX, quase sem excepção, escreveram também para os mais novos. Jorge Amado, com o livro “O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá”, Vinícius de Morais, com “O Poeta Aprendiz”, Clarice Lispector, com “O Mistério do Coelho Pensante e Outros Contos”, são alguns exemplos. Esse facto, aliado à existência de livros para os adultos editados e ilustrados para as crianças, como são os casos de alguns contos de Machado de Assis, ajudou no reconhecimento da literatura infanto-juvenil no Brasil. Em Moçambique o cenário é diferente. Poucos escritores consagrados escrevem para crianças.

Só para se ter uma ideia, Mia Couto somente entra para a literatura infanto-juvenil com o livro “O Gato e o Escuro” em 2001, depois de ter publicado a coletânea de poemas “Raiz de Orvalho”, no ano de 1983. Ungulani Ba Ka Khossa estreia-se na literatura para os mais novos com o livro “O Rei Mocho” em 2012, depois de “Ualalapi” ter sido lançado em 1987. “Fogueira de Letras” (2019), de Aurélio Furdela, e “O Jovem Caçador e A Velha Dentuça” (2016), de Lucílio Manjate, são dois livros que foram lançados depois de os seus autores terem lançado “O Golo que Meteu o Árbitro” (2003) e “Manifesto” (2006), respectivamente. Essa característica, que é compartilhada com o cenário literário de alguns países europeu, onde encontramos pouquíssimos escritores de literatura infanto-juvenil com visibilidade, (J K Rolling, com o “Harry Potter”, por exemplo, é uma das poucas excepções, David Walliam, com o “Vovó Vigarista” ou “O Menino do Vestido” é outra), tornam a literatura infanto-juvenil uma literatura menor, subalterna, à parte, própria de escritores iniciáticos.

Ao perguntarem sobre os rostos e os rastos da literatura infanto-juvenil em Moçambique, mais do que falar de Orlando Mendes, Angelina Neves, Alberto da Barca, Pedro Muiambo ou Rogério Manjate, mais do que falar da passagem de fábulas populares para contos despedidos do carácter pedagógico, mais do que falar de crianças do nosso tempo em substituição dos animais humanizados como personagens, talvez fosse prudente responder que um dos rostos ou rastos da nossa literatura infanto-juvenil é o preconceito literário.

Na visão de alguns escritores, Pedro Pereira Lopes somente se tornou realmente escritor quando o romance “Mundo Grave” foi distinguido na primeira edição do Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa, em 2018, ou com o lançamento da colectânea de contos “O Mundo que Iremos Gaguejar de Cor” (2017), e não com o livro “O Homem dos Sete Cabelos”, Prémio Lusofonia, Município de Trofa, 2010. Para muitos leitores, o facto de “O Menino que Odiava Números” ter vencido o Prémio BCI de Literatura 2019 não torna o seu autor um escritor. É necessário que um livro para adultos seja publicado para que o autor do romance juvenil perfile na prateleira de livros escritos por “escritores”. Deve ser por isso que algumas pessoas consideram a Feira do Livro da Beira (FLIB) um evento de tubarões e o Festival do Livro Infantil da Kulemba (FLIK) um evento de peixes pequenos.

Outro rosto ou rasto de que a literatura infanto-juvenil em Moçambique enferma é a irresponsabilidade literária, na medida em que, nós, escritores ou “escritores”, aceitamos passivamente o fosso que existem entre a literatura infantil e a literatura feita para os adultos. Pouco escrevemos para os adolescentes. Pouco escrevemos para os jovens. Já não falo do gênero Young Adult.

O autor de “O Pequeno Príncipe” diz, a certa altura do livro: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Por sua vez, Pitágoras defende que devemos educar as nossas crianças, para que não tenhamos de corrigir os adultos. Meus caros, a biblioteca não pode ser um lugar para pôr os nossos filhos de castigo. Repito: a biblioteca não pode ser um lugar para pôr os nossos filhos de castigo. A biblioteca deve ser um lugar onde os nossos filhos podem conhecer novas pessoas, novos lugares, novas coisas, sem a necessidade de darem a volta ao mundo.

As crianças aprendem pelos exemplos. Um pai que sempre está ao telemóvel dificilmente terá um filho ávido de ter a cabeça mergulhada nos livros. As crianças aprendem mais pelo que os adultos fazem, e menos pelo que dizem. A leitura é uma doença altamente contagiosa. Quem me dera se existisse muita gente doente, principalmente os mais novos! Quem me dera se o preconceito e a irresponsabilidade não fossem os principais rostos ou os rastos da nossa literatura infanto-juvenil! Quem me dera!

O músico moçambicano, Michel William, encontra-se em Maputo para um concerto especial na Galeria do Porto, marcado para esta sexta-feira. O concerto beneficente será realizado em colaboração com renomados artistas nacionais, incluindo Stewart Sukuma e Regina dos Santos.

A nota de imprensa sobre o concerto beneficente tem como objectivo apoiar a Associação Kutsaka, cujo nome significa “Estar Feliz”, em Changana.

“Através desta iniciativa, os artistas envolvidos procuram contribuir para causas importantes e impactar positivamente as comunidades locais”, lê-se na nota de imprensa.

Antes do concerto será realizada uma conferência de imprensa na Galeria do Porto de Maputo, esta quarta-feira, às 10h. No evento, Michel William e os artistas convidados vão partilhar as suas aspirações concernente à sua participação no concerto e o impacto positivo que a Associação Kutsaka tem gerado na província de Gaza, particularmente, no Distrito de Macie.

Um dos eventos marcantes na digressão de Michel William foi a sua participou do evento “The
Voice ON”, na Cidade de Beira, ao lado de Johnny Ramos, de Cabo Verde, e Gaby, ex-membro da banda angolana Irmãos Verdade. O evento fortaleceu os laços musicais entre os artistas de diferentes países africanos.

“Além de sua carreira de sucesso, Michel William lançou um álbum e vários hits aclamados, incluindo ‘Chega de Solidão’, ‘Meu Valor’, ‘Já Sabias’, entre outros singles que têm conquistado corações dos fãs. Actualmente, ele está colaborando com músicos locais na composição de seu próximo álbum, ampliando ainda mais sua influência e impacto na música moçambicana. Espera-se que o concerto seja uma noite inesquecível, repleta de música envolvente, energia positiva e solidariedade. Os bilhetes estão disponíveis para venda online e todas as receitas serão doadas para apoiar as actividades da Associação Kutsaka”.

“A mulher sobressalente”, de Dany Wambire, é um conto com crítica incisiva às dinâmicas patriarcais e às expectativas sociais sobre as mulheres. No enredo, o perfil da protagonista é de alguém que se recusa a ser apenas mais uma na sociedade e a epígrafe, “A luta pela liberdade começa com a limpeza dos ismos nas coisas”, atribui uma profundidade filosófica e crítica à obra, indicando uma abordagem reflexiva sobre temas de liberdade e opressão.

O conto de Dany Wambire inicia com um cenário de chegada, dramático, a 1 de Novembro de 1990. A partir dessa data, a narrativa apresenta uma perspectiva sobre as práticas familiares e sociais que perpetuam a subjugação feminina. A descrição da mãe da Quinita, encostada ao portão da casa da patroa da rapariga, envolve uma atmosfera de tensão e medo, exacerbada pelos latidos dos cães, que, na história, simbolizam a vigilância constante da sociedade.

A mãe de Quinita, acusada de facilitar a fuga da filha para a cidade, enfrenta a opressão tanto do marido quanto da comunidade que a julga. E ela, mesmo em meio a tanta adversidade, procura uma forma de proteger a sua filha, evidenciando a resistência feminina na luta pela dignidade.

O pai de Quinita, descrito como preguiçoso e explorador, espera que a filha se torne “peça sobressalente” da família, frase esta que é carregada de ironia e dor, indicando uma pressão para a conformidade e a negação de um futuro próprio, assim, continuando o ciclo de submissão.

A narração, na primeira pessoa, confere uma concepção íntima e pessoal, permitindo que o leitor sinta a angústia e a esperança da protagonista. A linguagem poética e metafórica para descrever a dura realidade é rica em imagens sensoriais e detalhes visuais. Por exemplo, “um banho da chuva”, “das brincadeiras de empurra-empurra com o vento”. Essas descrições não apenas situam o leitor no ambiente social, mas também evocam emoções e estados de espírito.

A escolha de palavras e o ritmo do texto criam uma sensação de urgência e inevitabilidade, reflectindo a luta constante da personagem para encontrar o seu lugar no mundo.

A descrição da mãe de Quinita, chorando, tentando consolar a filha, adiciona uma camada de empatia à personagem materna. A sua tentativa de se despedir da patroa e agradecer, em nome da filha, sugere um gesto de gratidão e submissão, projectando, com efeito, a posição subalterna das mulheres em Moçambique. Nesse sentido, aliás, o confronto de Quinita com o pai é um momento crucial. A reacção dele, cuspindo no chão, é um gesto de desprezo e domínio, ilustrando o desrespeito e a ausência de afecto paternal.

A imagem do pai, preparando-se para usar um arco e flecha, simboliza a agressão e a caça, evocando violência e controlo sobre a vida de Quinita. O uso do termo “pangolim” para descrever a postura defensiva da protagonista indica sua tentativa de se proteger em uma situação de perigo iminente, ou seja, ela parece estar em uma família tóxica, tentando encontrar uma maneira de se libertar, ainda muito nova.

As formulações como “diminuía a montanha das nádegas das suas mulheres” e “celeiros prenhes de alimentos” descrevem exploração das mulheres pela figura paterna. Esses aspectos não apenas destacam o controlo físico e emocional exercido pelo pai de Quinita, mas também a redução das mulheres a meros objectos de procriação e subsistência.

O conto expõe o desejo do pai de usar a filha como um peão em negociações matrimoniais, esperando que ela traga presentes e benefícios à família através da gestação. A descrição do pai como alguém que “deveria ser caçado, perder-se na própria armadilha” inverte as perspectivas tradicionais do género e poder, sugerindo que a verdadeira armadilha é a cultura opressiva que ele perpetua.

A visita de Quinita às amigas, que a recebem com espanto e pranto, e a pergunta “Como é que eu ousava regressar ao calvário?” descreve o estigma e a pressão social sobre as mulheres que tentam desafiar normas estabelecidas. A ideia de um pretendente que espera pela donzela até ela estar pronta para o casamento reforça o tema da objectivação e do valor atribuído à virgindade feminina.

A narrativa de Dany Wambire também destaca a violência social e emocional infligida às mulheres, no caso, através da história de Micaela. Acusada de adultério e humilhada publicamente, a situação ilustra a severidade com que a sociedade tradicionalmente lida com as mulheres que transgridem normas patriarcais. Mesmo sendo uma adolescente casada com um homem adulto, ela é julgada e condenada por um suposto adultério, sem nunca se considerar a sua juventude e a desigualdade de poder em seu relacionamento. A multidão que a agride verbalmente, chamando-a de “puta”, reflecte a sedimentação do machismo e a brutalidade colectiva contra a mulher que desafia ou é percebida como desafiando normas sociais.

A humilhação de Micaela culmina com a necessidade de sua família devolver os presentes do pretendente, mostrando que a rapariga e a mulher são tratadas como objecto transaccional, cujo valor é medido pelo seu comportamento sexual. Portanto, esta desumanização é uma crítica feroz à cultura patriarcal que reduz as mulheres a meras mercadorias.

A passagem que descreve o abuso sexual sofrido por Quinita é impactante. O uso de metáforas, como a comparação da sua impureza com os rios poluídos e a necessidade de “nascer de novo” como uma cristã baptizada enfatiza a profundidade do trauma e a ideia de busca desesperada por purificação e redenção. As descrições sensoriais de “gotas de sangue, secas, coloriam-lhes as margens, denunciando abuso de sexo” e “lágrimas adormecidas nas maçãs do rosto” não apenas visualizam o sofrimento físico, mas também simbolizam a dor emocional e espiritual.
“A mulher sobressalente” evoca um ambiente de violência e passividade, onde até os membros da família, como a irmã de Quinita, permanecem indiferentes ou condescendentes.

A solidão de Quinita é quase palpável, quando ela se refugia às suas sobrinhas, que também estão presas em um ciclo de violência e observação impotente. O sentimento de sujidade que ela tenta lavar simboliza a tentativa de remover a mancha do abuso e a marca indelével deixada pela violência masculina.

A narrativa faz uma crítica explícita à hipocrisia moral da sociedade, onde a honra e a pureza das mulheres são vigiadas e punidas com dureza, enquanto a violência e o abuso masculino são frequentemente aceites. A descrição do cunhado de Quinita, que comete o abuso sob o olhar passivo dos outros, reforça aquela observação.

O conto explora a tradição do “lobolo” (dote) em algumas culturas africanas, nas quais o casamento é formalizado através da entrega de bens do noivo à família da noiva. Nesse contexto, a narrativa revela uma prática cultural em que a procriação, especialmente a geração de filhos do sexo masculino, é de suma importância. O pai da narradora considera a dívida paga ao genro com o nascimento do neto, destacando as mulheres como meros veículos para a continuidade de um sentido machista de família.

O conflito central é a luta da protagonista contra as imposições culturais que a privam de sua autonomia e maternidade. A dor de Quinita é notória quando tenta reivindicar o direito de ficar com o seu bebé, fruto da violação do cunhado, com a cumplicidade familiar, mas é brutalmente contrariada pela autoridade personificada pelo seu pai.
A voz de Quinita denuncia como as normas culturais podem ser manipuladas para justificar comportamentos abusivos, revelando uma sociedade que valoriza mais a estabilidade dos casamentos do que a felicidade e o bem-estar individual das mulheres. A entrega do bebé à irmã de Quinita, para salvar o casamento dela por “só fazer meninas”, é um exemplo extremo da mercantilização das relações familiares em determinados contextos.

A escrita de Dany Wambire, finalizando, é directa e imersiva, com diálogos que carregam a tensão e a dor da protagonista. A simplicidade contrasta com a complexidade dos sentimentos expressos, o que aumenta o impacto emocional do conto. A repetição do tema da dívida e do pagamento, sempre com a questão do “lobolo” no centro, reforça a ideia de que as relações humanas são, cada vez mais, tratadas como transacções económicas, desprovidas de afecto genuíno.

 

*Texto  escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.

Nesta quarta-feira, a partir das 17 horas, a Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, vai receber a investigadora Marta Banasiak para uma sessão literária designada “Escrevendo Moçambique, lendo o mundo – leituras da obra de João Paulo Borges Coelho”.

Segundo a nota de imprensa da Fundação Fernando Leite Couto, pretende-se, com a sessão aberta ao público, percorrer o conjunto de obras de um dos mais consagrados escritores de Moçambique, João Paulo Borges Coelho, numa conversa com a professora doutorada da Universidade de Campinas, no Brasil.

A sessão com Marta Banasiak acontece numa altura em que João Paulo Borges Coelho ainda não lançou o seu mais recente livro em Moçambique, Roteiros provinciais (publicado em Portugal), o que poderá ser uma intervenção útil para os leitores que se interessam pela escrita do autor moçambicano.

Marta Banasiak é investigadora de pós-doutoramento no Departamento de Teoria Literária da Universidade de Campinas (Brasil), onde desenvolve o projecto “Da (semi)periferia vê-se o mundo – literaturas africanas no contexto de Literatura-Mundial”, e bolseira da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É licenciada em Filologia Checa (2009) e mestre em Filologia Portuguesa (2013), pela Universidade Carolina de Praga (República Checa), e doutorada em Estudos Românicos com especialidade em Estudos Africanos (2019), pela Universidade de Lisboa (Portugal), com uma tese intitulada “Os lugares do Outro: as representações do poder na obra de João Paulo Borges e J.M. Coetzee”. Tem investigado e publicado nas áreas das literaturas africanas de língua portuguesa, particularmente moçambicana, cinema dos países de língua portuguesa e literatura africana comparada. Além das áreas mencionadas, os seus interesses de investigação recentes centram-se em estudos do Oceano Índico. Tem artigos e capítulos dos livros publicados no Brasil, EUA, vários países da Europa e Moçambique.

No próximo dia 6 de Julho, a Associação MOZAPAZ vai apresentar, na Cidade de Lisboa, capital portuguesa, o filme O pequeno escritor, do realizador Júlio Silva. Trata-se de uma narrativa cinematográfica que procura fazer um tributo aos escritores moçambicanos, e será apresentado na UCCLA, às 15 horas.

A entrada para ver a produção cinematográfica de Júlio Silva, residente em Portugal há vários anos, é grátis, contará com um debate sobre literatura e poesia moçambicana e entrega de diplomas a alguns escritores moçambicanos.

O pequeno escritor é o décimo filme de Júlio Silva, concebido a pensar nos amantes da literatura moçambicana. Essencialmente, a longa-metragem retrata a paixão de uma criança pelo livro, uma criança que vai crescendo com a paixão de declamar poesia, sempre agarrada aos livros moçambicanos. Em causa está um menino humilde, que, por não poder comprar uma obra sequer, anda de casa em casa para as obter, pedindo-as. Essa paixão da criança passa a despertar interesse dos estudantes, que a procuram por reconhecer nela um mestre da poesia moçambicana.

O pequeno escritor foi rodado nos arredores de Maputo e em Gaza, em ambientes pelo realizador/escritor considerados pobres, pois com isso pretende demostrar que a literatura não é uma arte elitista.

O filme teve o apoio da Mozbeat Filmes, da Associação de Escritores moçambicanos na Diáspora e da Associação Xitende.

O Camaleão que tinha desaprendido de mudar de cor, de Pedro Pereira Lopes, é a obra vencedora da segunda edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil, organizado pela Associação Kulemba.

A recente obra literária de Pereira Lopes destacou-se entre cinco finalistas, segundo a acta do júri, sempre com qualidades apuradas. Os membros do júri chegaram a tal conclusão porque observaram semelhanças ao nível da moral, dos ensinamentos e a mensagem das obras. Também por isso, o júri encontrou algumas dificuldades no decurso do processo de selecção da obra vencedora. Ainda assim, concluiu, por maioria de dois votos, dos três possíves, a favor de proclamar vencedor de entre os 10 livros candidatos ao prémio, a obra “O camaleão que tinha desaprendido de mudar de cor”, de Pedro Pereira Lopes.

“Esta é, para a maioria dos membros do Júri, de entre as obras concorrentes ao Prémio, aquela que mais se aproxima do conjunto de critérios desejáveis numa obra de qualidade, a ponto de justificar a atribuição de um Prémio”, lê-se ainda na acta do júri: “A história está escrita com rigor linguístico e sem erros, e apresenta um texto bem balanceado, com melodia e que, por vezes, oferece mesmo alguns laivos artísticos, o que faz dela um texto de leitura aprazível. É uma história com enredo, não se antevendo logo à partida qual será o desfecho, o que apela à leitura até ao final. Apresenta diálogos bem construídos e relevantes para o texto, conferindo deste modo uma boa interacção entre os personagens, factor que vai ao encontro de uma das características mais recomendadas para uma história de livro infanto-juvenil de qualidade”.

Para os membros do júri da segunda edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil, Carlos dos Santos, Alberto da Barca e Benjamim João, a história de Pereira Lopes passa duas importantes mensagens com carácter educativo, de relevância cada vez maior na actualidade, nomedamente sobre a importância da protecção e da preservação do ecosistema, sugerindo os impactos negativos que o desequilíbrio do meio ambiente traz para os seres vivos, e também sobre o facto de que a união e a acção concertada entre as pessoas tem força para provocar mudanças na sociedade e no mundo.

Assim, “a eleição da história O camaleão que tinha desaprendido de mudar de cor nada diz sobre a qualidade das restantes obras, que não deixam de ter as suas próprias qualidades e valor”. clarifica o júri: “Significa tão somente que estas, segundo a opinião do júri, se aproximam menos de alguns dos critérios universais utilizados na análise integral das obras do que a obra vencedora”.

Pedro Pereira Lopes é o segundo autor a vencer o Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil, depois de Carlos dos Santos, ano passado, com a obra Os pintores de sonhos.

Ilustrado por Nelsa Guambe, O camaleão que tinha desaprendido de mudar de cor foi lançado sob a chancela da Fundação Fernando Leite Couto, em 2023. Com efeito, a distinção na segunda edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil permite ao escritor e à ilustradora serem agraciados com 100 mil meticais, isto é, 80 mil para Pedro Pereira Lopes e 20 mil para Nelsa Guambe.

As outras quatro obras finalistas da segunda edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil são A breve história do livro que gostaria de ser escrito, de Celso C. Cossa, O desamparo das flores, de Miguel Luís, Quando a Marta aprendeu a pedalar, de Eliana N՛Zualo, e O Kaio e o cão Panda, de Patrícia Vasco.

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