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Criminosas ou Vítimas: Uma Visão Humanizada do Infanticídio

O sistema de justiça em Moçambique ainda é marcado por um padrão excessivamente punitivo. Na prática, observa-se que a resposta predominante diante do crime é o encarceramento. Essa postura reflecte uma ideia enraizada na sociedade: a de que a solução para o infractor passa, inevitavelmente, por colocá-lo atrás das grades. 

Esse entendimento, revela-se limitado e pouco eficaz, pois a prisão, por si só, raramente contribui para a reintegração social e, em muitos casos, agrava desigualdades e fragilidades já existentes. Um exemplo é a forma como o sistema lida com o crime de infanticídio em Moçambique.

O infanticídio é definido como o homicídio cometido pela mãe contra o filho nascente ou recém-nascido, sob influência do estado puerperal – um período de alterações fisiológicas e psicológicas profundas ligadas ao parto e ao pós-parto. Seguindo a lógica punitiva, a tendência imediata é submeter as mulheres acusadas a penas severas, sem considerar os contextos que as levaram a tal acto.

O pedido de posicionamento em relação a proposta de revisão do artigo 163° do CP, submetido ao Provedor de Justiça pela REFORMAR em colaboração com organizações da sociedade civil e individualidades que se destacam na defesa dos direitos humanos em Moçambique, propõe um olhar mais atento e sensibilizado evidenciando que, na maioria dos casos, não existe um desígnio criminoso deliberado. Muitas mulheres cometem infanticídio não por prazer, mas em razão de factores sociais, culturais e psicológicos. O abandono por parte do parceiro ou da família, a vulnerabilidade económica, a estigmatização dos filhos nascidos fora do casamento, ou ainda situações de deficiência e deformações físicas, geram sentimentos de desespero e exclusão que culminam em decisões extremas. Além disso, transtornos como depressão pós-parto ou psicose puerperal comprometem a percepção da ilicitude do acto, tornando imprescindível uma avaliação especializada e atenuação da responsabildade penal.

É necessário perguntar: será que prender é mesmo a melhor resposta? O grande desafio está em prevenir, educar e oferecer apoio, e não apenas em castigar. Continuar com a lógica da punição é manter um sistema que afasta as pessoas, sem resolver as causas do problema.

Ao observar outras jurisdições, nota-se que o infanticídio é tratado como um delito distinto do homicídio comum. Muitos países reconhecem que o estado puerperal pode reduzir ou mesmo excluir a responsabilidade penal da mãe.

Em alguns países o infanticídio é tratado de maneira isolada e noutros não, por exemplo, a Inglaterra possui uma lei que considera a influência de transtornos psicológicos ou emocionais decorrentes do parto e do aleitamento, prevendo penas mais brandas e adaptadas à condição psíquica da mãe. Nos Estados Unidos, embora não haja tipificação autónoma, tribunais permitem o uso de defesas baseadas em distúrbios mentais, ainda que de forma desigual entre os estados. Na África do Sul, também o estado psicológico da mãe no pós-parto pode atenuar a pena.

Já noutros sistemas, como Itália, Brasil e Peru, o infanticídio é tipificado de forma específica. O Código Penal brasileiro, por exemplo, prevê pena reduzida quando a mãe mata o filho “sob influência do estado puerperal”, exigindo comprovação técnica dessa condição. No Perú, a lei vincula o infanticídio ao contexto do parto ou puerpério, mesmo sem exigência de prova pericial detalhada.

Essa diversidade de modelos demonstra que, internacionalmente, o infanticídio não é tratado como um homicídio comum, mas como uma situação especial, em que factores fisiológicos, psicológicos e sociais têm papel determinante.

No âmbito legal, Moçambique tem avançado, mas ainda de forma tímida. O Código Penal de 1886 tratava o infanticídio como agravado pela qualidade das pessoas. O de 2014, no artigo 165º, previa pena de 20 a 24 anos de prisão para quem matasse um recém-nascido até 15 dias após o nascimento. Já o Código Penal de 2019, no artigo 163º, reduziu a pena para 1 a 5 anos, introduzindo critérios relacionados ao sujeito activo e à influência do parto. Apesar de ser um avanço, a abordagem continua centrada na punição, sem prever obrigatoriamente avaliação psicológica e medidas alternativas.

Essa mudança não ocorre no vazio: há suporte em instrumentos jurídicos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que protege a vida e a dignidade humana; a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que incentiva a compreensão dos contextos sociais e psicológicos; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), que garante igualdade e protecção jurídica às mulheres; as Regras de Bangkok, que defendem medidas não privativas de liberdade para mulheres presas; e o Protocolo de Maputo, que reconhece os direitos reprodutivos e a necessidade de apoio físico e mental antes, durante e após o parto.

Esses instrumentos reforçam a necessidade de uma abordagem mais humana e abrangente do infanticídio, valorizando o contexto emocional, social e econômico da mãe.

A reclusão não pode ser a resposta automática a crimes como o infanticídio. Tratar essas mulheres apenas como criminosas é negar a complexidade de suas realidades. Moçambique tem diante de si a oportunidade de construir uma justiça mais humanizada, preventiva e inclusiva, que tenha uma visão que vá além do encarceramento. Nesse sentido, torna-se urgente investir em medidas alternativas, que combinem responsabilização e possibilidades reais de transformação social e pessoal. O enfoque deve estar na reinserção da mulher, com suporte psicológico, económico e comunitário e reconhecimento dos problemas sociais que estão a volta da prática do crime.

A revisão do artigo 163.º do Código Penal é um passo decisivo para conciliar a protecção da criança com a dignidade da mãe, reconhecendo que a verdadeira justiça não se resume a punir, mas a compreender, prevenir e transformar.

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