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Carta Aberta ao Novo Timoneiro da Cultura

Com poucos dias para o empossamento do novo governo, declarado a 23 de Dezembro, num ambiente marcado por crescentes tensões e polarização política e social, surge uma oportunidade ímpar para repensar e redefinir as prioridades da pasta da Cultura. Como artista, esta questão inquieta-me profundamente. Num país tão rico em diversidade cultural como o nosso, mas onde a gestão desse património tem sido frequentemente negligenciada, urge reconhecer o papel transformador da cultura como instrumento de coesão social, identidade nacional e motor de desenvolvimento económico.

A actuação do Ministério da Cultura e Turismo, que agora cessará funções, foi, a meu ver, redutora, intransparente e limitada. Ficou restrita à promoção de eventos pontuais e à valorização superficial de manifestações culturais, ao mesmo tempo que negligenciou as reais necessidades dos artistas, criadores e indústrias culturais e criativas. Adicionalmente, cooptou o Fundac – fundo destinado à pesquisa e ao desenvolvimento de iniciativas culturais – para outros fins. O resultado? Um cenário onde o potencial económico e social da cultura continua subaproveitado.

É crucial, antes de mais, questionar o que significa “cultura moçambicana”. Sem uma visão clara e inclusiva, continuaremos a ver políticas desarticuladas, afastadas do povo e desconectadas das dinâmicas actuais. Uma abordagem que reconheça a cultura como eixo estratégico para a transformação social fortalecerá a identidade nacional e criará oportunidades para artistas e comunidades em todo o país.

Outra questão que merece atenção é a própria designação do Ministério. A combinação de Cultura e Turismo, embora funcional em muitos contextos, é limitativa para um país onde arte e criatividade já se afirmam como motores de transformação económica. Proponho um nome mais abrangente, como Ministério das Indústrias Culturais, Criativas e Turismo, que reflicta o carácter mercantil e industrial da arte contemporânea e potencie os fazedores de arte, transformando social e economicamente as suas vidas.

A cultura em Moçambique não deve ser apenas um espelho do passado, mas um campo de interacção entre o antigo e o moderno. Num momento em que a vida moderna ameaça as tradições rurais, é essencial encontrar um equilíbrio. Sem isso, corremos o risco de perder a nossa riqueza cultural. Promover um diálogo entre expressões autóctones e contemporâneas, garantindo igualdade de oportunidades a todos os criadores, assegurará que a cultura permaneça viva, diversa e relevante.

O maior desafio, no entanto, reside na capacidade do Ministério para perceber e fortalecer a cadeia de valor cultural. Muitos artistas moçambicanos enfrentam dificuldades para profissionalizar as suas actividades e alcançar mercados. Se nada mudar, talentos promissores continuarão condenados ao amadorismo e à precariedade. Por outro lado, políticas que facilitem o acesso a mercados, fundos de apoio e capacitação profissional poderão transformar a arte numa fonte digna de rendimento e integração social. É também urgente reconhecer o papel do mecenas e criar incentivos claros para que a classe empresarial compreenda as vantagens de apoiar projectos artísticos e perceba o retorno proporcionado pelo Estado.

A transparência na gestão de iniciativas culturais é outro ponto crítico. Casos como a polémica em torno da estátua de Eduardo Mondlane mostram como a má gestão mina a confiança pública e desmotiva os fazedores de arte. Um Ministério transparente, que envolva artistas e comunidades nas decisões, será catalisador de mudanças positivas e exemplo de boa governação.

Os museus moçambicanos, actualmente subaproveitados, devem ser reaproximados do povo. Alunos, estudantes e turistas devem encontrar nesses espaços não apenas arte e história, mas experiências transformadoras que promovam curiosidade e orgulho nacional.

Além disso, a crescente digitalização exige esforços governamentais para capacitar artistas a monetizar as suas obras em plataformas digitais. Legislações claras sobre direitos autorais e royalties são indispensáveis para proteger os criadores e garantir que beneficiem do seu trabalho.

Por fim, a descentralização é fundamental. Governos provinciais e distritais devem ser empoderados para criar e apoiar iniciativas culturais locais, promovendo festivais temáticos, valorizando artesãos e transformando praças públicas em espaços de intervenção artística. Sem esta descentralização, o fosso entre zonas urbanas e rurais continuará a crescer, deixando muitas comunidades à margem da vida cultural.

Manter o status quo significa perpetuar exclusão, má gestão e desperdício do imenso potencial da cultura moçambicana. Adopção de uma visão ousada, inclusiva e transformadora permitirá que a cultura se torne uma força de progresso, aproximando o governo do povo e capacitando os cidadãos.

Ao novo ministro e ao novo presidente, deixo esta reflexão: a cultura é mais do que um símbolo, é um motor para a coesão e o desenvolvimento. E, se bem cuidada, pode ser a chave para um Moçambique mais unido, próspero e criativo.

Álvaro Taruma é escritor e finalista do Prémio Oceanos 2024.

 

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