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‘Carla’: entre a personificação e a sugestão

Quem já sofreu por amor desconfia da flor.

in A nossa conversa, Kelly Smith.

 

A arte literária preenche-se de vozes: meigas, atrevidas, errantes e acutilantes. Para cada uma, certo perfil, afinal, no exercício da representação narrativa, no caso ficcional, a escrita tanto pode absorver paixões e emoções da mesma maneira que gera sentidos sobre tudo isso.

A ficção é um lugar da acção onde os movimentos retilíneos uniformes podem cruzar-se com a irresponsabilidade de algumas decisões das personagens. Como escritor, eventualmente ainda à procura de reunir as ferramentas indispensáveis para a sua escrita, Negro sabe qual é força da literatura, quer na recriação de espaços, quer na afirmação de uma estética que corporifica a razão, o sonho e a desilusão. Por isso, o autor escreveu Carla – uma história de paixão e dor. É uma novela curta, 69 páginas que dizem muito sobre as relações urbanas cada vez mais precipitadas e fugazes.

O livro de estreia de Negro foi editado pela Kulera e revela um escritor audaz na exploração do universo feminino. Carla é essa personagem ‘comum’, que pode ser uma Madame Bovary, de Flaubert, ou Jocasta, de Sófocles, dependendo de quem a toma como amada. A história dela começa num lugar vulgar, um bar, à noite, onde a solidão aparente rapidamente transforma-se num mar com tonalidades rosas veementes. É a partir desse estabelecimento que Carla se apaixona, como prevê a composição “Romeu e Juliet”, dos Dire Straits, por um belo estranho e pelas promessas que ele faz. Fred é esse casanova que promete tudo na mesma intensidade com que se farta das suas promessas. É a grande razão do conflito interior das suas parceiras, Vera e Carla, e nada consegue fazer para corrigir as situações debilitantes por si causadas.

Ao construir o universo diegético, Negro leu e percebeu o contexto das histórias que são habitualmente produzidas em Moçambique. Por isso, ao invés de correr o risco de se desligar do seu contexto urbano autêntico, o escritor investiu nas malhas de uma esfera pública tensa, igualmente, pelas disputas excêntricas que desafiam o bom senso. É um estilo próprio, através do qual o escritor define a fronteira entre o amor e o ódio.

Quem souber ler o livro, vai encontrar em Carla uma personagem sem rosto ou com um rosto imperceptível, mesmo a condizer com a capa. Pouco importa… Pois, seja qual for o cenário, a protagonista da história é apresentada à laia de uma personificação exacta e exaustiva. Portanto, no plano real, Carla não é ninguém, todavia, paradoxalmente, é toda mulher vítima de escolhas incoerentes.

Erguendo a sua protagonista no amor e no ressentimento, Negro lança à ficção uma série de diálogos que endurecem um discurso sobre prováveis jogos de afecto. Num episódio dramático, tentando acalmar a namorada, Fred diz: – Deixa-me cuidar de ti. Pode ser? A resposta de Carla surge num ápice: – Como pensas em cuidar de alguém que magoas? Magoar é um verbo constate na novela. Na verdade, as mágoas funcionam para iluminar o carácter das personagens, trazendo-as, de algum modo, a essa azáfama que é o dia-a-dia das rosas. Porque, à semelhança da peça teatral de Emerson Mapanga, em Carla as rosas padecem por causa de um jardineiro com mãos de ferro.

Na sua primeira aventura em livro, Negro vai até últimas consequências com as suas personagens, concedendo ao narrador o poder da assertada manipulação dos eventos cardinais e da organização discursiva que preserva na história a lucidez necessária. Nessa disposição, o escritor não está muito preocupado com os aspectos técnicos da narrativa. O que o move, essencialmente, é o prazer de contar, porque contar é uma forma de chorar as mágoas dos outros e de aspirar por algum propósito sereno. Há-de ser por essa razão que na parte final da história, Carla, muito diferente da moral inicial, tenta ultrapassar o universo da ficção para continuar a existir no mundo dos homens, onde as balas, os revólveres, os mísseis e as armas nucleares substituem a alma das tulipas ou de tantas espécies de orquídeas capazes de brotar da terra.

Carla – uma história de paixão e dor é um passeio nocturno sobre as avenidas de Maputo, sendo essa cidade, em profundidade, a representação de várias linguagens universais. Também por isso, a protagonista da história, a sua prima Zinha, a rival Vera e Fred encerram tendências e atitudes humanas diante de certas provações. Em Carla, bem ao ritmo dilacerante de um Nicholas Sparks ou de um Ivan Turguenev, a vida é tão efémera quanto inesperada. E nela os materiais do amor, do ódio, da insanidade e da violência psicológica sugerem uma realidade que urge des(re)construir.

 

Título: Carla – uma história de paixão e dor

Autor: Negro

Editora: Kulera

Classificação: 14

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