Era um dos jovens escritores mais promissores. Era também jornalista, trabalhava no Jornal Notícias, diário onde haviam pontificado alguns dos grandes nomes do nosso jornalismo e outros tantos da nossa literatura. Estávamos em Dezembro de 1986, mais precisamente a 15 de Dezembro, uma segunda-feira, quando fui ao seu encontro, a meio da manhã. Conhecia e admirava o seu trabalho literário. Dos jovens de então, ele se destacava. Marquei o encontro ao telefone, naquela época havia apenas o telefone fixo, ou PBX, e terá sido por essa via que combinei ir ter com ele ao jornal. Conversámos sobre o que andávamos a escrever, não publicava e não escrevia desde que caíra doente. Eu estava a organizar uma colectânea de poesia para fazê-la editar na “Gazeta”, onde colaborava. Creio que esse projecto não passou de uma simples ideia. Mais tarde, com a Fátima Mendonça, haveríamos de o coligir, numa antologia que ambos organizámos, a Antologia da Nova Poesia Moçambicana. Ele concordou em colaborar e ficou combinado que em Janeiro, a seguir às festas, eu haveria de o contactar. No entanto, antes de abandonar a redacção, pedi que ele me levasse ao arquivo do jornal, o que o fez sempre prestimoso. “Fica aqui a entreter-te”, disse-me, e lá me deixou. Eu, entretanto, prometera: “Depois falo contigo”. Mergulhei nos jornais. À hora do almoço, fui-me embora. A 6 de Janeiro de 1987 passei pelo Notícias. Ele não estava. Na manhã seguinte liguei ao jornal. Ele também não estava. No dia 8 de Janeiro, disco novamente o número do Notícias:
– Bom dia, pedia para falar com o Senhor Baltazar Maninguane.
– O Baltazar faleceu…
Fiquei atónito.
– Faleceu?!
Do outro lado, ainda me lembro, o homem estava impaciente:
– Sim. O Senhor não leu o jornal?!
Ler o Notícias, logo cedo, era uma tarefa obrigatória naqueles inesquecíveis, emblemáticos, sofridos e exaltantes anos 80. Não o fizera ainda. Fiquei estarrecido, devo ter balbuciado algumas palavras sem sentido e não me recordo de como desliguei o telefone.
Quando, em 2004, organizei, a pedido do Nelson de Matos, então meu editor na D. Quixote, a antologia Nunca Mais é Sábado, resgatei do livro que fizera com a Fátima Mendonça três poemas do Brian Tio Ninguas, o seu nome literário. Num texto breve e comovido que redigiria para a “Gazeta”, em Janeiro de 1987, chamava-lhe camarada (de letras, entenda-se) e dizia: “Os poetas não morrem nem emudecem”. Tinha ele 26 anos, fora publicado, para além da imprensa local, na revista África, promovida por Manuel Ferreira, em Portugal.
Brian Tio Ninguas: “Sinto a respiração do aroma das palavras/ que viajam nos teus olhos// Sinto a pulsação da vontade desfraldada/ que no teu corpo acolhe a vida// Enrolo um cordel de esperanças nesses seios/ que alimentarão sóis que chamar-te-ão Mamã.”
Lembrei-me, a partir daquele episódio dilacerante, de alguns escritores que subscreveram, ao longo dos anos, uma espécie de anátema da nossa história cultural: a fatalidade na literatura moçambicana. A notícia de escritores mortos muito jovens é extensa. Para além do Brian Tio Ninguas (1961-1978), vou aqui tributar a favor de Castigo Zita (1961-1988), Celestino Jorge (1956-1998), Gulamo Khan (1952-1986) e Orlando Muhlanga (1963-1996). Poderia fazê-lo, se o espaço mo consentisse, a Carlos Cardoso, Hilário Matusse, Bahassany Adamogy, Júlio Bicá ou Amin Nordine, debruçando-me apenas sobre os que conheci ou com quem convivi, ou que me são próximos em termos geracionais. Fá-lo-ei, espero, um dia. Do Eduardo White e do José Pastor lavrei aqui longos e comovidos preitos.
O Castigo Zita visitava-me amiúde na redacção da revista Tempo, da qual era colaborador, onde assinava uma coluna intitulada “Trópico”. Sentávamo-nos lá no fundo e falávamos de literatura. Para além de escrever contos, era um activo membro da Associação dos Escritores (AEMO), onde coordenava, com António Firmino e Edgar Cossa, a Brigada João Dias. Editavam a revista Forja, que nasceu do sentimento de marginalização que alguns jovens sentiam da Charrua. Também era investigador. Chegou a compilar, a pedido do Albino Magaia, director da revista Tempo na época, os textos de João Albasini, o primeiro jornalista moçambicano de renome e um dos precursores da literatura moçambicana. Abasini fundou e dirigiu importantes jornais como O Africano e O Brado Africano. Dedicado e paciente, o Castigo recolheu textos, copiou-os dos jornais O Africano, O Brado Africano, tanto das colecções em papel do Arquivo Histórico como dos micro-filmes que encontrara no Centro Cultural Português em Maputo. Este trabalho árduo e minucioso iria emperrar na fase composição do livro projectado – na época a composição de textos era feita a chumbo na Tempográfica – e não chegou a ser editado na colecção “Cadernos Tempo”, como Albino Magaia almejava.
Quando a morte o surpreendeu, por congestão, numa piscina em Harare, enquanto passava férias a seguir ao dia de Natal de 1988, ele tinha 27 anos e preparava-se para fazer o mesmo trabalho em relação a outra grande figura do nosso jornalismo – Estácio Dias. Estácio Dias é um dos nomes míticos do nosso jornalismo e era pai do escritor João Dias, falecido prematuramente aos 23 anos em Lisboa, para onde se transferira, depois de ter frequentado 3 anos de Direito em Coimbra. A Brigada que Castigo animava homenageava João Dias, um dos primeiros nomes da ficção moçambicana. João Dias dedicou-se à crítica cinematográfica, ao jornalismo e à literatura e deixou uma obra que seria publicada postumamente – Godido e outros contos. Castigo era de uma grande generosidade e humildade. Um homem bom, excelente conversador. Um entusiasta e dinamizador de múltiplas iniciativas, das que ele febrilmente intentava. Zita nascera no Guijá, em 1961. Não deixou livro publicado. Neste país de amnésia e descaso, sem referências, nem interesses culturais, ninguém pegou no seu trabalho e o publicou. Ficou emperrado nas linotypes da vetusta Tempográfica.
Castigo Zita: “Na sua cabeça as coisas transformavam-se e ficava apenas a lembrança do túmulo diante da palhota, para que a mulher não esquecesse dele de cada vez que entrasse nela. E caso trouxesse um homem para dormir com ela, esse homem que o vinha cornear, visse e reconhecesse o verdadeiro dono das roupas, dos seus bens que para sempre continuariam a seu cuidado. Apesar de viver agora na cidade, levava consigo na memória o respeito pelo morto: estaria enterrado diante de qualquer casa onde quer que ela fosse viver para não ser esconjurado pelos deuses e para que os seus filhos não sofressem no futuro o castigo de não parir por causa disso.”
Colega de redacção, o Celestino Jorge era, para além de jornalista, poeta. Tinha sido professor. Publicara alguns poemas nas páginas literárias da época, figurara em algumas antologias, não publicou em livro. Durante anos trabalhámos lado a lado. Também era nosso colega o Fernando Manuel, que era o repórter mais destacado do nosso tempo. Ele próprio poeta e ficcionista, para além de ser um cronista brilhante. Tenho saudades das conversas amenas que tinha com o Celestino, da sua extrema elegância e perspicácia, da sua humildade extraordinária. Saí da Tempo, em finais de 1990, quando fui estudar em Portugal e perdi contacto com ele. Retornei a Moçambique em 1995 e recordo-me de nos termos visto fortuitamente algures na cidade. Quando eu estava a preparar a antologia Nunca Mais é Sábado, em 2003, descobri, ao procurá-lo, que ele morrera, cinco anos antes. A recorrente tragédia da nossa literatura e do nosso país.
Celestino Jorge: “Como sumo de mafwilo açucarado/ flui e reflui no lábio/ teu anunciado beijo// E uma mancha de ansiedade/ sobre mim suave desce/ com a cor arco-íris do crepúsculo/ Na solidão/ um feixe de ansiedade/ derrama-se em jorro/ do teu olhar impostor/ Ansiedade…”
Quando entrei para a Rádio Moçambique, no início da década de 80, ainda me cruzei com o Gulamo Khan nos seus vetustos corredores. Conhecia-o também, ou sobretudo, do mundo literário. Para além de poeta, o Gulamo era um extraordinário declamador. Tenho na memória alguns dos poemas do José Craveirinha que ele dizia de forma superlativa. Ele celebrizou as “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane”, que as surripiou afectuosamente e as difundiu. Craveirinha haveria de redigir, na dedicatória, quando deu letra de imprensa ao poema: “Homenagem póstuma ao muito Amigo Gulamo que as descobriu e divulgou”. A AEMO também era um dos lugares de encontro. A última imagem que tenho dele: estava sentado num dos bancos do Tunduru – antes de um “Msaho”, que ocorria no coreto do jardim, onde nos últimos sábados de cada mês íamos dizer poesia -, combalido com jat leg de uma viagem ao Japão. Falámos brevemente. Nascido em 1952, em Maputo, morreu no acidente de aviação de Mbuzini, com Samora Machel, de quem era adido de imprensa. Moçambicanto, obra editada postumamente, em 1990, é a súmula da sua produção poética.
Gulamo Khan: “céleres as águas/ zambezeiam pela memória/ das almadias do silêncio// nem o zumbido da cigarra/ me entontece// nem o troar do tambor/ me ensurdece// as vozes que são/ sulcos das nossas esperanças// Oh pátria/ moçambiquero-te/ neste alumbramento/ e amar-te/ devo-o à carne e ao nervo/ deglutidos em revolta.”
Por fim, quero lembrar-me do Orlando Muhlanga. Não fui amigo dele, embora o conhecesse e tivéssemos falado ocasionalmente. Tive pena de não o ter entrevistado. Quando, na década anterior, eu interrogava os escritores, na minha resoluta busca da memória, havia uma questão sacramental: o lugar da guerra no imaginário moçambicano. Ali estava o livro que na década anterior intuíra vir a ser escrito – Diário de Sangue. Li-o logo que ele o publicou. Foi das primeiras obras que li quando regressei, em meados de 1995, a Moçambique. Creio que esta obra fez do Orlando a mais importante revelação, nos anos 90, da nossa ficção narrativa. O livro foi escrito no interior da guerra e sobre a guerra. É de uma perturbadora imagística, de uma efabulação esquizofrénica, de uma linguagem que retratava, com crueza, uma realidade cruel e violenta, demente e inexplicável daquela guerra, daqueles ataques a inocentes, dos massacres às populações, que a amnésia hoje cultua e parece não se importar com a sua reincidência. Valeria a pena (re)lermos este soberbo libelo contra a guerra do Muhlanga. Talvez assim se desse conteúdo ao vocábulo Paz. Orlando Muhlanga foi professor de História e de Português, integrou o exército entre 1984 e 1988, foi jornalista, publicou ainda alguns contos. Morreu com 33 anos num inexplicável acidente de viação, no dia 7 de Abril de 1996.
Orlando Muhlanga: “Não faziam barulho, andavam como hienas e batiam às portas devagarinho, mandavam os donos das casas entregarem tudo o que tinham na sua imaginação. Os que eram desconfiados de serem ‘secretários’ eram amarrados numa corda grossa e escoltados sob máxima vigilância. Dos bandidos quem sentisse vontade de matar, faziam-no a baionetas suáveis e mortais para a vítima não gritar.”
Brian Tio Ninguas, Castigo Zita, Celestino Jorge, Gulamo Khan e Orlando Muhlanga, tal como outros que eu gostava de os celebrar aqui, não merecem o descaso da pátria e a nossa complacente e persistente deslembrança. Faço quezília de os trazer à memória, afectuosamente, hoje e sempre.