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Bento Baloi – Promessa de mais mundo

Manuscrito encontrado nas margens do Rio Save depois das cheias. Despojos de um comerciante. O expediente é conhecido, desde o Dom Quixote ao Manuscrito Encontrado em Saragoça, de Jan Potocki e aos cadernos de que um certo degredado aproveita para nos falar das prisões siberianas no tempo do Czar, Dostoievski, de seu nome, O Quixote e o texto do sábio árabe que Cervantes lê é o monumento que sabemos e funda a narrativa moderna. Potocki escreve um romance picaresco de mistura com elementos do fantástico, embrenha-se pela novela erótica, gozosa sempre e, de mistura com altas fragas filosóficas e goyescas peripécias, oferece-nos um dos grandes livros da literatura em qualquer língua.

Com Recordações da Casa Amarela sofrem-se as solidões do desterro siberiano, uma angústia e um sofrimento aparentemente com causa, anterior à mordacidade judaica da culpa sem causa de o Processo, de Kafka.
Textos dentro de textos, inserts, como se diz para o cinema, impregnam as estratégias narrativas de inúmeros autores e tradições literárias. Mesmo as que não se socorrem do citado expediente.

Os Recados da Alma, romance de estreia de Bento Baloi, recorre aos manuscritos que se salvam de um desastre natural no rio Save, fronteira entre as províncias de Inhambane e Sofala, no sul a centro do país. A possibilidade e razão da sua descoberta definem, logo à partida, a condição do narrador, jornalista de profissão, a quem o desditoso comerciante confia as suas memórias. É como se lhe dissesse: ficam melhor guardadas contigo porque pressago é o tempo e cíclica a catástrofe. E de alguma transfiguração serás capaz.

Passe a propositada repetição, digamos que o manuscrito se autonomiza. E torrencial é o tempo e o enquadramento político- social, cultural, em que as estórias acontecem.

Não me compete substituir-me à estória aqui narrada, melhor, à multiplicidade de situações, remetendo para o convulsivo período da transição entre colonialismo e independência, que Recados da Alma aborda. Que de algum modo pretende transfigurar, descrevendo-os, uma vezes em jeito de quase crónica, outras em registo de reportagem jornalística, outras ainda socorrendo-se explicitamente de uma factualidade que o texto da História refere e confirma, entre as personagens do romance e os protagonistas político-militares ou simples cidadãos que a viveram.

Ao título, algo confessional, de estro lírico redundante, acresce uma espécie de contraponto que lhe anula aquilo que em português quase soa a vulgar. Refiro-me ao título comum a cada um dos seus capítulos, todos sob a referencialidade genérica de Xingombela, seguidos de diferentes sub-títulos consoante o desenvolvimento da narrativa. Como se a alusão à conhecida dança fosse um esforço de tradução para Xi-ronga e Xi-Shangana do nome em língua portuguesa. Escreve Bento Baloi, em nota de autor, onde apõe em epígrafe um provérbio popular tsonga, na língua original: “ Os provérbios não se traduzem. A sua profundidade extravasa os limites das línguas. Os provérbios fundam-se no âmago das culturas das quais emergem e recuam sempre ao infinito dos tempos”. E acrescenta: “Xingombela até pode parecer apenas mais uma dança popular moçambicana. Mas não é só. É muito mais. É uma maneira de ser e de estar das nossas gentes. Reveste-se da mística do amor, da concórdia e da cumplicidade com o próximo.” E conclui Bento Baloi: “ Proponho então que dancemos xingombela numa roda em torno das páginas que se seguem e que nos transmitamos um ao outro testemunhos da nossa essência interior como povo”.

Trata-se de uma proposta legítima. De um desafio também. Nos limites entre um ufanismo, que a narrativa em caleidoscópio se encarrega de complexificar a seu modo, outras vezes em fragmento que o ritmo de uma situação, o crescendo dos muitos conflitos e da dança de encontros e desencontros no palco da História impõe, esta espécie de andamentos em Xingombela acabam por ser, no plano textual, um desafio ao que pode restar de uma oralidade invocada, mudada para um género outro, com recursos diversos – os da língua portuguesa, da prosódia, das marcas de literariedade que o romance implica, como queriam os formalistas russos. Neste conflito e nesta grelha, se assim me posso exprimir, vem mergulhando, debatendo-se, emergindo, muita da novel narrativa moçambicana.

Do subúrbio local, como escreve o ensaísta e professor Francisco Noa, para um subúrbio, se não global, pelo menos ciente da diversidade de gentes, imaginações, referencialidades, esta prosa dança num a contrário da sensibilidade apocalíptica a que se refere Frank Kermode, porque intensa no mostrar, quase em gingação e canto de identidade, o que foi essa espécie de princípio que queria ser verbo e, ao sê-lo, nome, e nessa pulsão, utopia. Como se o narrador se tivesse deslocado à cratera de um começo percebendo, na matéria ígnea irrompendo, o que precisava de ser contado. Repartido como melhor percebeu o fogo e a cinza. Não que se trate aqui da pretensão de abarcar uma totalidade, embora se saiba que esse início é sempre um momento que se sucede a um outro início anterior, para nos enquadrar, propor, situações, plots narrativos, delineamentos de caminhos que tanto podem concorrer para a harmonia como para a disrupção. Embora a dimensão utópica se imponha, mais do que uma retórica onde o ngoma das identidade empeçonhasse o movimento livre da liberdade, essa redundância que funda, como disse Rimbaud, a poesia, ou melhor, uma poética do ente e do existente, plasma-se aqui numa produção plural de sentido. Contraditório, por vezes. Outras, resvalando para uma jubilação ao modo da quase loa e gesta, não obstante ciente da complexidade, pressentindo-a, da sombra, embora se não pressintam ainda os sinais da distopia a rondar.

Digo isto porque o autor não se exime nem ao Amor e à sua inevitabilidade conjuntiva ou disjuntiva, tantas vezes trágica. Bento Baloi socorre-se dos mais diversos recursos estilísticos para nos cronicar sobre a jubilação e a melancolia (esta ao de leve), ou escarificar a traços incisivos as máscaras ensanguentadas da morte e a violência.

Nesta coreografia da alma, de canto inventado e inaugural, porque eufórico, está paradoxalmente também o finco de uma certa finitude. Como primeiro livro de Bento Baloi, percebe-se esse compromisso e entusiasmo com aquilo que também vem sendo, quase obsessivamente para alguns, uma permanente viagem às raízes, nelas fazendo caber conjuntos mais alargados de linhagem, com suas regras e sistemas. Bento Baloi, suburbano na cidade grande, que a conquista, ensaia o seu génesis, sempre comunitário mas também cosmopolita, sempre clamando por todas as vozes, de Maputo a Lisboa, do bairro suburbano de Vieira para o mundo, às vezes convocando mitos urbanos – alguns de controverso, pasmo, veracidade transmutada -, outras arriscando uma osmose que talvez carecesse de maior distanciação.
Outras obras se seguirão, espero. Não peço, nem me cabe, que Bento Baloi tropece na distopia que nos assola, no país e no mundo. Nem que se especialize na arte do naufrágio que atormentou Melville. Esse, do Moby Dick, e que é a barca dos poetas, mas que, como Guimarães Rosa, pressinta a terceira margem, a do rio do tempo, do nosso des (sentido), do amor urgente, da mais lúcida crítica e exigente inquietação, da luta com o demónio, da invocação dos espíritos todos. Os que nos presidem e que somos com eles.
 

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