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As nossas tragédias colectivas 

A tragédia da embarcação que virou e matou cerca de 100 pessoas na Ilha de Moçambique veio despertar na consciência de muitos moçambicanos que afinal o Estado (Governo) moçambicano não tem a capacidade de nos proteger das tragédias públicas, sejam elas causadas por factores naturais ou humanos, como é o caso em alusão. Diz-se que que tudo na vida tem o seu lado positivo, mas para tragédias como estas da Ilha de Moçambique, é difícil encontrar “um lado positivo”. Principalmente agora que as famílias ainda estão a enterrar os corpos dos seus entes queridos e outras ainda aguardam que os seus familiares regressem, vivos ou mortos. 

O que podemos fazer com esta tragédia é despertar a consciência para reflectir sobre as nossas tragédias colectivas como Estado (povo). Como dizia no Noite Informativa da última segunda-feira, a embarcação da Ilha de Moçambique é o nosso my love marítimo. Se moçambicanos são transportadores de casa para o trabalho e vice-versa, apinhados em camiões de carga (my love), na cidade capital Maputo, não pode haver surpresa que no distrito de Mossuril as pessoas sejam transportadas apinhadas em barcos de pesca. É uma das nossas tragédias colectivas: a tragédia da falta da dignidade da vida humana, principalmente a vida dos pobres.

Não é somente nos my love de Maputo ou nos barcos de pesca de Mossuril em que a vida dos moçambicanos pobres não é valorizada. Por exemplo, nos comboios da Empresa Pública Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), os passageiros são transportadores pendurados do lado de fora dos vagões – devido à falta de espaço dentro dos vagões. Todos vemos isso sempre que nos cruzamos com um comboio na linha férrea, na hora da ponta. Talvez não estejamos conscientes do quão trágico isso é, até acontecer uma fatalidade como a da Ilha de Moçambique. 

A nossa Estrada Nacional Número 1 (EN1), é também uma tragédia. Cheia de covas, sem sinalização e nem serviços públicos para prestar primeiros socorros às vítimas de acidentes de viação (apesar de ter portagens para cobrar dinheiro aos utentes), a nossa EN1 é uma verdadeira tragédia que mata regularmente e vai continuar a matar.

As nossas tragédias colectivas não estão somente no sector de transporte público. E nem podiam estar. Senão seria um problema do sector (dos transportes) e não do Estado (Governo). 

No sector da Saúde, temos, por exemplo, a tragédia da cólera. Uma amiga cientista me explicou com muita simplicidade que a cólera é uma doença causada por ingestão de fezes humanas. “A pessoa infectada pelo vibrião colérico (a pessoa que tem cólera) vai defecar a céu aberto e não tapa as suas vezes. Estas expostas, são ladeadas por moscas que transportam as fezes para os alimentos (vegetais, por exemplo) que são servidos a pessoas saudáveis sem ser bem lavados. Estas pessoas saudáveis podem, assim, adquirir a bactéria e ficar com cólera. Houve, então, duas situações problemáticas de higiene neste cenário: 1) a pessoa que defecou a céu aberto e 2) a falta de higiene alimentar. Podia acontecer, também, a pessoa que defecou no cenário acima, limpar as fezes e não lavar as mãos. De seguida, poderia ter ido saudar com aperto de mão a pessoas saudáveis. Estas comendo sem lavar as mãos, podem ingerir a bactéria”.

A cólera é uma tragédia em Moçambique pois todos os anos milhares de pessoas ficam doentes e outras milhares morrem! Sem conhecimento das causas da cólera, a população se revolta com as mortes, destrói infraestruturas públicas, casas de agentes de saúde e mata líderes locais, acusando-os de ser agentes propagadores da cólera nas comunidades. 

O Estado (Governo) culpa o povo por ingerir fezes humanas, nas quais encontra a bactéria Vibrio cholerae que causa a doença, por isso o foco tem sido insistir nas campanhas para lavar bem as mãos, os alimentos, os utensílios de cozinha (nos quais se acredita que tem as bactérias causadoras da cólera). Mas poderia também ser o Estado a criar condições de habitabilidade dos assentamentos humanos para que as pessoas não andassem a ingerir involuntariamente as fezes humanas. 

Para entender o que estamos a dizer, basta olhar para bairros dos ricos como Sommerschield, Polana (Maputo), Macuti (beira), Parque (Nampula)! Não há (muitos casos de) cólera lá! Não porque o Governo anda a fazer campanha de educação contra cólera, mas porque as pessoas não defecam a céu-aberto, tem água canalizada nas casas para lavar os alimentos e sobretudo as pessoas que vivem nestes bairros têm instrução para saber o que se pode e o que não se pode fazer.

 A insurgência em Cabo Delgado também é uma das nossas tragédias colectivas, a mais recente a emergir. O Governo gosta de dizer que o que em Cabo Delgado temos uma agressão externa por uma organização terrorista, mas na verdade, são as nossas fragilidades que causaram a insurgência. Jovens locais, sem esperança de uma vida digna, foram facilmente aliciados, radicalizados e mobilizados para entrar nas matas, treinar e matar seus irmãos, amigos, pais, vizinhos e destruir propriedades públicas e privadas. O Governo pode negar que a pobreza, a exclusão económica, a falta de emprego, a falta de instrução e sobretudo a falta de esperança de uma vida digna, sejam a causa raiz da insurgência ou do terrorismo – como o Governo gosta de chamar -, mas negar factos não torna os factos inverídicos.

 

Da mesma forma que a cólera é causada pela falta de higiene, a o terrorismo em Cabo Delgado é causado pela falta de esperança de uma vida digna, pela parte da juventude local.  Os insurgentes não recrutaram jovens dos bairros da Polana, Macuti,  pelas mesmas razoes que o vibrião colérico não infecta (muito) os jovens destes mesmos bairros. 

Ter forças armadas que não conseguem combater a insurgência em Cabo Delgado, ao ponto de precisarmos da intervenção das forças Ruanda, também é nossa tragédia colectiva. É  ainda mais trágico acreditamos que sem treinar, equipar e pagar os nossos militares, ainda assim eles terão força e bravura para defender a pátria. É trágico criticamos os nossos militares pela falta de bravura e coragem, que os ruandeses têm, mas sem analisar os meios e condições de trabalho de que as duas forças dispõem!

O nosso sistema de ensino público é também uma das nossas tragédias colectivas. Das grandes! É muito trágico não construir salas de aulas, não pagar salários aos professores, não disponibilizar livro escolar e ainda assim fingir acreditar que os alunos aprendem alguma coisa. À semelhança da tragédia da cólera, da insurgência, a tragédia do ensino público também afecta mais aos mais desfavorecidos. Aos da periferia. As crianças que vivem em Macuti, na Polana e em outros bairros similares, não frequentem (a maioria) o nosso ensino público trágico. Estudam em escolas privadas. 

Contudo, a nossa maior tragédia colectiva, a TRAGÉDIA (com todas as letras maiúsculas), é acreditarmos (nós o povo) que não somos culpados pelas tragédias que ocorrem na nossa sociedade e que Moçambique pode progredir sem a nossa luta para obrigarmos o Estado (Governo) a resolver as nossas tragédias!

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