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As metáforas das nossas fracturas sociais em “Midinho” de Hélder Muteia e “João Galagala” de Chico António 

Na Travessa do Tiracolo, num lugar “mofo e cansado”, vive Midinho. No Ponto Final, à noite, João Galagala pede esmola. Midinho tem treze anos. João Galagala está na

idade escolar. Midinho é personagem do texto que encerra “O Barrigudo e Outros Contos”, livro de Hélder Muteia, publicado em 2018, através da Alcance Editores. João Gala Gala é personagem da música “João Galagala”, do músico moçambicano Chico António, do seu álbum “Memórias”, lançado em 2015. Dois personagens de textos diferentes, mas iguais na condição. Na verdade, duas poderosas imagens das nossas fracturas sociais e do nosso descaso colectivo com o nosso próprio futuro como sociedade.

Midinho, como o descreve o narrador do texto de Muteia, é “um moluene, um moleque, um marginal como muitos outros que pulula(va)m pelas praças do Maputo”, uma criança que, à certa altura, se vê atirada à sorte e tem de aprender a “inventar a vida e reinventá-la (…) se necessário”, para sobreviver na rua, remexendo com paciência e perícia o lixo para achar o que comer. Quem sabe algumas “fatias de pão que algum menino mimado se recusara a comer”?! A condição é a mesma de João Galagala.

“Faça chuva, faça sol/ faça frio, faça calor (…) todos os dias são assim”, canta o intérprete, o pequeno guerreiro tem de “fazer pela vida”.

Midinho e João Galagala são personagens-tipo, arquétipos de uma infância desprotegida e sintomas de uma sociedade que se constrói e mantém sob desigualdades sociais imensas. Num lado, os histórica e eternamente merecedores, para os quais vida é uma garantia, e, no outro extremo, os condenados à sorte, aqueles para quem, como diz Midinho, “Amanhã é outro dia” ou, como canta Chico, “o amanhã não existe”.

O que Hélder Muteia escreve e Chico António canta é sobre, como muito bem faz notar Maria João Leote de Carvalho*, as rupturas sociais que provém de profundas carências afectivas e educativas, mas também com origem na desvantagem social e exclusão que atingem duramente alguns segmentos da população sobretudo urbana. 

O texto “Midinho” e a música “João Galagala” retratam, igualmente, a nossa despreocupação com o futuro, com a sociedade que projectamos na forma como tratamos as crianças que, como diz o intérprete, são todas nossas; tenham fugido de casa, abandonadas ou expulsas, são todas nossas.

 

*https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/16597828/Delinquencia_juvenil_um_velho_problema_novos_contornos.pdf

 

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