O País – A verdade como notícia

Amizades, percursos e Samora: a noite de Ivan Mazuze no Franco

Na linhagem dos Mazuze a que pertence, Ivan é o primeiro músico. Na verdade, pode-se dizer que a vida de profissional em música é um produto do acaso. Afinal, quando foi matriculado numa escola de música, era, sobretudo, para se manter ocupado e nunca se desviar dos bons caminhos. No entanto, mais do que isso, Ivan Mazuze mergulhou na arte musical a sério e, já na adolescência, tocava nos bares do Xipamanine, subúrbio de Maputo, com o seu amigo Deodato Siquir.

Mesmo sem ter em quem se inspirar, no contexto doméstico, Ivan, quinto filho de oito irmãos, partiu para estudar música em Cape Town. Na África do Sul, fundamentalmente, foi bem recebido por Tony Paco, que mostrou ao então adolescente de 15 anos onde, quando e com quem tocar. Simultaneamente, na cidade do afro-jazz, Ivan sedimentou a sua amizade com Hélder Gonzaga, que já partira de Maputo.

Na altura da iniciação à música, com os três amigos, Ivan conviveu o tempo necessário, pois, como que fugazmente, cada um seguiu o seu percurso. Tony Paco (percussão) permaneceria na África do Sul, Hélder Gonzaga (baixo) voltaria para Moçambique, Deodato Siquir (bateria e voz) seguiria até Dinamarca e Ivan Mazuze (saxofone) fixaria residência na Noruega.

Apesar de terem tomado direcções diferentes, os laços entre os quatro músicos se mantiveram e, esta sexta-feira, na Sala Grande do Franco-Moçambicano, Cidade de Maputo, juntaram-se a outros três amigos, nomeadamente: o norueguês de origens indianas, Jai Shankar (percussão); o sul-africano Mark Fransman (saxofone, teclado e voz), autor dos distintos solos de Maganda, igualmente formado em Cape Town e que já produziu Jimmy Dludlu e Moreira Chonguiça; e, por fim, Stélio Mondlane (bateria), que, mesmo sendo o mais novo da banda, trabalhou com intensidade e assertividade. Todos juntos tocaram num concerto que teve Ivan Mazuze como o protagonista, mas em que, com a excepção de Jai Shankar, cada um mostrou a sua melhor versão.

Para abrir o concerto, o tema escolhido foi “Inkomu tatana”, do álbum Maganda, interpretado de forma alegre e num ambiente acolhedor. Na ausência das coristas, a tarefa de colocar a voz nos coros ficou na responsabilidade de Deodato Siquir, que, multidisciplinar, também tocou a sua amada bateria.

Sentado nas primeiras filas da Sala Grande, o pai de Ivan, Abílio Mazuze, ouviu radiante esse tema que parece uma homenagem a si: “Inkomu tatana”, do changana, “Obrigado, pai”.  Sempre rodeado de seus familiares, filho, netos e etc., o velho Mazuze voltou a ver o filho em palco como se fosse pela primeira vez. Orgulhoso, bem colado à nora e às duas netas, esposa e filhas de Ivan, aquele espectador especial, à semelhança de parte significativa do auditório, fez, de seguida, de “Inta mutlangela” seu projecto musical.

Com novos arranjos, mas sempre mantendo a base popular que o auditório do Franco teimou em ecoar aos ouvidos do saxofonista, “Inta mutlangela” funcionou, de facto, como uma acção de graça por tudo o que Deus tem feito na sua vida. Uma vez mais, o autor de Mutema fez os coros e toda a gente aparentemente sedenta por um concerto de jazz tlangelou/agradeceu pelas possibilidades até religiosas que a canção popular encerra. A essa altura do concerto, os Mazuze já nem lembravam que, mal Ivan aterrou em Maputo, no último fim-de-semana, meteu-se em ensaios, deixando para depois o afecto de que todos merecem. “Não tive momentos de socialização com os meus pais, nestes dias, porque queria preparar este concerto para vocês”, justificou o artista naquele seu bom português, mas com alguns estrangeirismos na tonalidade.

Ora com arranjos diferentes, ora com prolongamentos rítmicos mais sustentados, Ivan Mazuze foi interpretando temas dos seus quatro álbuns. De Moya, por exemplo, escolheu “Wemba wa”, “Massessa” e “Lunde”, essa composição inspirada nas sonoridades norueguesas; De Ndzuti, escolheu “Mwana wa ku kasa”; de Ubuntu, escolheu, além de “Inta mutlangela”, “Kulhula” e, por fim, o tão solicitado tema “Papa Samora”, de Maganda.

Mesmo em jeito de despedida, “Papa Samora” foi a última e a mais aclamada actuação da noite, o que valeu aos artistas cerca de três minutos de aplausos ininterruptos. No derradeiro momento do concerto, toda a gente levantou-se para agradecer àquelas sete almas pelas duas horas de actuação. Talvez, a uns meros metros da Sala Grande, a estátua do primeiro Presidente de Moçambique tenha vibrado emoção; talvez, onde quer que esteja, Samora Machel tenha escutado o público cantar os seguintes versos traduzidos do changana: “Papa Samora ensinou-nos a não chorar”. De facto, a noite foi de intensa alegria.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos