Álvaro Fausto Taruma é autor de quatro livros de poesia: Para uma cartografia da noite (2016), Matéria para um grito (2018), Animais do ocaso (2021) e Recolher obrigatório do coração (2022). Com o segundo título, foi um dos vencedores do Prémio BCI de Literatura para melhor livro do ano – 2018. O seu percurso na arte do verso ou da prosa poética parece promissor. Ainda assim, o poeta não pretende alongar-se mais com a poesia. Logo, o livro que, brevemente, será publicado em Portugal, e, depois, em Moçambique, será o seu último de poesia. Na primeira pessoa do singular, Taruma explica as razões da sua decisão, refere-se às suas convicções, reflecte sobre o panorama literário moçambicano e ainda deixa algumas garantias. E uma das garantias é mesmo essa: o adeus à poesia.
Em um ano publica dois livros: Animais do ocaso, em Portugal, e Recolher obrigatório do coração, em Moçambique. Qual é a história por detrás destas propostas poéticas?
A história destes dois livros é uma tentativa de voltar aos lançamentos, depois de algum tempo angustiante de espera e de produção que estava imbuído de muitas incertezas, por causa da responsabilidade que se acresceu à volta daquilo que eu produzia. Se for a ver, os meus dois primeiros livros, sobretudo o primeiro, foi lançado assim ao acaso, dentro de um espírito de jovem poeta que está a começar. Sem, evidentemente, muito protagonismo à volta disso. Apenas houve uma necessidade de lançar e estar no panorama artístico ou no meio literário moçambicano.
Para uma cartografia da noite cumpriu o que se propunha no princípio do seu percurso literário?
Podemos dizer que sim. Cumpriu e, depois, esse vulcão, essa montanha acresceu-se com o Prémio BCI de Literatura que chega com o livro seguinte, Matéria para um grito. Daí este receio antes de publicar os livros subsequentes. Aí houve um questionamento como este: então? O que é que vem depois de Matéria para um grito? Nunca quis repetir-me nas formas. Sempre quis trazer uma proposta totalmente nova.
Mas há um denominador comum e que é transversal à sua escrita: a presença da noite. Não a noite do sentido de um período do dia, mas a noite do sentido da simbologia.
Exactamente. Isso, evidentemente, está lá… Leva-se um certo tempo a desconstruir um certo modelo de pensamento e criativo. Há uma presença da noite nos meus dois últimos livros como nos dois primeiros, nesse sentido simbólico. Mas também há uma presença constante de uma crítica dura, contundente, de um olhar atento a tudo aquilo que nos rodeia em termos de situação social. Já em termos de efeitos criativos, há sempre uma coisa que tentei reduzir, que é a ideia da plasticidade da palavra. Estou a focar-me mais na realidade do que na plasticidade da palavra que, às vezes, nos coloca numa situação em que estamos a dizer coisas que em termos de contundência não se percebe o que se pretende transmitir.
Pretende que a sua poesia tenha mais impacto?
Eu acho que essa é a responsabilidade do criador. A estética, de uma certa forma, para mim, está lado a lado com a moral e, mais do que isso, com a necessidade de transformar.
Nada dessa coisa de arte pela arte, apenas…
São opções. Falo da forma que eu escolhi para me expressar. A minha poesia é comprometida com a mudança. É utópica, dá-se para o bem da sociedade e pretende criar uma disrupção e indagações no leitor.
Uma poesia de angústias…
De alguma forma, pode ser. De outra, não. As propostas que trago, em termos temáticos, são multifacetadas, de micro realidades que vou buscar no que vejo. Algumas vezes, isso é feliz. Noutras vezes, nem tanto.
Nesse exercício encontramos muitas construções e desconstruções da alma e dos sentimentos humanos. O que isso exige de si?
Exige um olhar atento e uma espécie de sofrimento. Não é fácil criar poesia, pelo menos não é como eu a crio. Nunca criei numa situação cómoda, sempre foi numa situação desconfortável. Sempre a perder. Nunca criei numa situação em que estivesse vantajoso de todos os pontos de vista da vida.
Apesar de tudo isso, eu penso que a sua poesia é fundamentalmente de amor. Por exemplo, a partir do amor, pode-se se pensar em temas sociais candentes: angústia, depressão e etc. Pensar nas situações que podem comprometer o amor também é um projecto literário?
Há um autor argentino que tem sido fundamental para mim: Jorge Luis Borges. Ele diz que existem apenas dois temas fundamentais na literatura. O amor e a morte. Portanto, a minha poesia, por mais que se afaste, está dentro destes dois parêntesis, o amor e a morte. Eu funciono, em termos de criação, nesse intervalo. O amor em termos de fundação. Começamos aí, é transversal e universal. Depois temos a morte, que não significa perdermos a vida na sua totalidade. A morte é um conjunto dessas pequenas perdas que nós vamos vivendo todos os dias. Assim, voltamos ao tema da noite, a essa escuridão. Eu sou pessimista de natureza, mas nunca escrevo a pensar no pessimismo. Eu escrevo para expressar o contrário. É preciso mostrarmos essa noite para que a pessoa possa encontrar a luz e essa luz significa esperança.
Com Matéria para um grito venceu o Prémio BCI de Literatura para melhor livro, ex aequo com Armando Artur. O que isso significou para si?
Em geral, o prémio não me trouxe nada em termos de mudança na vida literária. Ganhei o prémio três meses depois de ter lançado o livro e não significou nada em termos de venda. Se calhar, significou porque, quando ganhei o prémio, eu estava a necessitar de dinheiro. Ganhei 100 mil meticais. Fiquei zangado até porque poderia ter ganhado 200 mil. O prémio foi importante porque deixou a mensagem de que a juventude, os escritores mais novos, podem chegar mais longe e merecer este prémio. Para mim, era evidente que Matéria para um grito merecia o prémio de melhor livro do ano. Mesmo Para uma cartografia da noite, eu tinha a consciência de que estava entre os melhores livros. Eu era observador atento do que se produzia aqui. Desde que entrei para a literatura, sempre quis produzir colocando-me acima do padrão. Por mais que não tivesse conquistado o Prémio BCI, eu tinha a consciência de que estes dois livros trariam alguma mudança.
Sentiu-se a representar uma geração?
Sim, porque militei bastante dentro dessa geração, com escritores que saíram do Kuphaluxa, como Amosse Mucavele, Nelson Lineu, Eduardo Quive, Japone Arijuane e Mauro Brito. Fomos pessoas que militamos e demo-nos à causa da literatura. Acima de tudo, tínhamos essa curiosidade de pesquisar mais. Eu, de alguma forma, sabia que dali alguém iria sair e que seria um símbolo, uma voz autorizada a falar de literatura e a produzir livros de qualidade.
E acha que a sua geração sentiu-se representada consigo, quando venceu o BCI de Literatura?
Eu acho que se sentiu representada. O retorno foi positivo e as pessoas acreditaram… O livro que venceu no ano seguinte, O menino que odiava números, de Celso Cossa, veio nesta sequência de revolução de um artista jovem quebrar o paradigma. Porque as pessoas não acreditavam que um jovem pudesse ganhar o prémio de melhor livro do ano. Os livros não devem ser premiados pela longevidade dos escritores, mas pelo impacto que trazem no panorama literário. Se formos por aí, as caras vão mudar e vão surgir novas vozes. Por exemplo, a Hirondina Joshua é pouco conhecida, mas é uma autora de impacto. Com força e com pujança. Outro exemplo, Virgília Ferrão, que está a introduzir em Moçambique um tipo de literatura que não existia: a ficção científica. Bem ou mal, ela está a pavimentar um caminho e isto é que uma coisa de impacto, porque, por mais que venham outros, sabemos que a história começou com Virgília Ferrão. São essas pessoas que estão a trazer propostas novas que devem ser premiadas.
É preciso premiar quem desbrava matas…
Não só quem desbrava matas como também quem coloca uma pedra fundadora. Por exemplo, temos o prémio HCB. Daqui a dois anos, podemos pensar nas pessoas elegíveis. Veremos que é um conjunto de pessoas que vem há três décadas, muitas vezes, com obras umas boas e outras nem tanto. Umas sem impacto dentro da literatura. É uma coisa de grupos e de confrarias. Por isso digo que eu sempre soube que a minha obra tinha impacto, por mais que não tivesse conquistado o BCI.
Depois disso vem Animais do ocaso.
Que o editor pediu-me material… Antes chamava-se Animais com cordas no coração. A nível estético, começo a perceber que coloquei demasiada informação que, se calhar, não seria bem recebida. Mas eu tive de mudar tudo o que construí antes, para me provar que consigo criar de uma forma diferente. Os meus primeiros livros são marcados, por exemplo, por prosa poética. Nos livros que se seguiram, trago versos em estrofes.
O poeta também compete consigo mesmo?
Tem que ser, porque, além disso, em termos de criação, do que se produz à volta, comecei a ver muitas repetições de Álvaro Fausto. Todas as novas propostas literárias dos jovens, mais novos que eu, neste momento, estão a competir com os livros que eu publiquei anteriormente. É muito notório até em pessoas que me pedem para ver os seus textos. Mas eu já não posso estar nesse patamar desses jovens criadores que têm como referência Álvaro Fausto. São jovens de qualidade, pena que não temos olheiros que os possam puxar para as suas editoras. Nós, em termos de qualidade literária na poesia, estamos bem.
E na prosa?
A prosa é das disciplinas literárias que menos consumo, mas vejo de longe. Consigo perceber que há vozes. Por exemplo, Mélio Tinga. Apareceu e apareceu muito bem. A própria Virgília Ferrão… Recentemente, foram lançadas duas obras pela Fundação Fernando Leite Couto, de Maya Ângela Macuácua e Geremias Mendoso. Depois, temos o trabalho da Fundza, que é praticamente prosa e num bom ritmo. Com o tempo, veremos esse boom. Mas a poesia está a ser muito bem-feita em Moçambique. Infelizmente, não temos esse acompanhamento em termos de leitores e de crítica.
Como poeta, gosta de estar canonizado a uma certa forma de escrever?
Não, é por isso que falo desta necessidade de mudar e de não permanecer o mesmo. Sempre temos de buscar novas formas de passar uma mensagem e existem muitas formas de o fazer. Nos meus livros anteriores, recorro bastante à metáfora e também ao recurso imagético como recurso estilístico. Mas, por exemplo, admiro quem usa a ironia. O domínio da ironia permite uma construção poética de valor elevado.
Gosta de Craveirinha?
Gosto de Craveirinha, mas o meu poeta de eleição é Eduardo White, no sentido da mancha gráfica e da emoção do texto. Mas gosto, por exemplo, da irreverência do Sebastião Alba, que é um poeta que levou até às últimas consequências a ideia de poesia e de viver como poeta. Às vezes sofrido e muita gente não compreende isso. Respeito-o muito, a ele e às pessoas da minha geração, os que mencionei há pouco tempo, que são pessoas que insistem com a escrita mesmo quando o país não oferece muito em termos de retorno.
Até quando o retorno é número de eleitores…
Exactamente. Eu estava a fazer as contas. Lancei Recolher obrigatório do coração e fiz um esforço para que o editor acreditasse e aceitasse publicar mil exemplares. Com isso reduziu o valor da compra. Pessoalmente, vendi 100 exemplares, em três meses. Esse é o pico. Mas tenho 3800 amigos no Facebook. Obviamente, divididos em vários continentes. Esperava que 10% desse número amigos pudesse comprar os livros, ou seja, 380 vendas. Vendi 100. É um cenário assustador! Por isso tenho estado a investir no mercado externo e vem aí mais um livro. Talvez saia até o princípio do próximo ano.
Sempre pela Exclamação?
Sempre pela Exclamação. Inclusive, vamos tirar textos de Animais do ocaso para serem publicados em revistas na Inglaterra. É um processo de tradução que já começou e isso irá terminar em livro traduzido para o inglês, nos Estado Unidos e no Reino Unido. Os editores foram à busca de mim e encontraram-me em Portugal e não em Moçambique. A mesma coisa ocorreu porque estamos no processo de tradução do livro para Sérvia. Também deu-se pela presença do livro em Portugal. E digo mais, o livro Animais do ocaso, em Portugal, onde nem sequer sou conhecido, esgotou. Mas o meu novo livro, em Moçambique, onde tenho muita visibilidade, não conseguimos vender 300 ou 500 exemplares a um preço muito baixo.
Animais do ocaso faz parte do plano nacional de leitura em Portugal. Imagino que isso seja especial.
Mas seria ainda especial se os moçambicanos conseguissem ao menos perceber o que isso significa. Muitas vezes, as notícias chegam, mas não conseguimos compreender o que se está a dizer. Nem um parabéns sequer recebemos. Mas nós conseguimos chegar a Portugal com um livro e o mesmo livro ser de leitura obrigatória dos portugueses. Não ouvimos ninguém do Ministério da Cultura, do Ministério da Educação. Não existe noção do que se produz em Moçambique. Por isso somos desrespeitados. Por exemplo, há uma produtora de um canal que me pede para o meu verso ser o nome do programa e que o poema sempre passe na abertura desse programa. Eu agradeci e pedi que fizéssemos as contas. Ela respondeu que isso é um pedido que me vai dar visibilidade. Mas não é a visibilidade que queremos, mas o cheque.
E que se respeite os direitos do autor.
É aí que eu queria chegar. Alguma coisa tem de mudar. Este ano escrevi uma cancão para UNICEF e fui pago. Foi uma das minhas experiências como compositor e gostei que me tivessem pago os direitos. Queremos chegar a um nível que as pessoas não perguntem de vivemos, quando dizemos que somos poetas. Eu quero viver de poesia e para poesia.
Além de viver de poesia e para poesia, teve uma experiência com a prosa, ao publicar um texto na antologia Espíritos quânticos, organizada por Virgília Ferrão. É o inicio de um percurso na prosa?
No início disto tudo, houve um grande investimento, de minha parte e da geração a que pertenço, para podermos nos expressar em qualquer área da literatura. O livro que vai sair em Portugal e que vai ter uma réplica em Moçambique, será o meu último livro de poesia. Por um grande momento, vou estar a investir no que tenho feito agora, escrever para o cinema, para banda desenhada e, quem sabe, para prosa, no sentido de romances e contos. Mas o próximo livro será o último livro de poesia de Álvaro Fausto Taruma.
Porquê?
Porque é preciso deixar o espaço para os outros. Fomos irreverentes. Mas a verdade é uma, não conseguimos chegar muito longe, pelo menos para o meu caso. Eu queria poder estar a uma situação em que os livros me ajudassem a viver. Encontrei um espaço na banda desenhada, no cinema, nas telenovelas, e é disso que vivo hoje. Então, por que investir muito do meu tempo no que, apesar de me dar vida emocionalmente, não me dá pés para caminhar naquilo que é o meu dia-a-dia, como homem dentro de uma sociedade?
34 anos de idade e quer deixar o espaço para os outros? Não é muito cedo, considerando que há autores com 34 anos de percurso literário?
Mas que, se calhar, não investiram, em termos de sangue, o que eu investi na poesia.
Por que acha que com a prosa de ficção será diferente?
Já estou a falar daquilo de que vivo hoje. Vivo do cinema e das telenovelas. É isso que paga as minhas contas e percebi que é nisso que devo investir. Muitos pensam que vivo da poesia, mas a poesia é algo que vem quando muitos estão a dormir e eu não consigo dormir. Eu sempre escrevi triste, agora quero escrever alegre.
Sugestões artistas para os leitores do jornal O País.
Sugiro Tornado, de Teresa Noronha, e Na pele do rosto, a coisa do tempo, de Guita Jr.