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“Além do véu: uma jornada de uma mãe ousada”

Por: Afonso Vaz Vassoa

Retrato de Checha Santana onde a cabeça e o coração se entendem

 

De forma propositada, componho estas linhas no Dia Mundial do Escritor, 13 de Outubro, para tentar, como se diz na gíria, “matar dois coelhos com uma cajadada”: em primeiro lugar, no geral, para voltar a reflectir mais um pouco acerca o processo criativo e o que pode motivar as pessoas a escreverem livros, independentemente da natureza e do estilo destes; em segundo lugar, especificamente, para entender e enquadrar a Checha Santana na sua natureza e no seu estilo literário, como escritora que brota de uma cidadã consciente e crítica.

Em termos gerais, acredito que o processo criativo varia de pessoa para pessoa e o seu fim, consciente ou inconsciente, é de resolver problemas e/ou satisfazer necessidades, sejam estes psicológicos ou sociológicos, materiais ou imateriais, mesmo que seja apenas para alimentar a alma e elevar o espírito.

Em conversa preliminar que tive com a Checha Santana, entendi que na sua marcha criativa – que consistiu em seguir os passos sugeridos na teoria da “Arte do Pensamento”, desenvolvida em 1926 pelo psicólogo inglês Graham Wallas –, a autora pretendeu resolver um problema (expresso implicitamente no véu das entrelinhas) e satisfazer alguma necessidade (expressa explicitamente fora do véu na jornada desta mãe ousada). Até certo ponto, com determinação e guiada por uma fé em acção, ela alcançou os dois objetivos ao compor este rico produto literário, onde, mostrando a sua natureza de humanismo – uma vez que coloca a pessoa humana no centro de todas as atenções –, se apresenta com um estilo cinematográfico de fazer a autobiografia.

Para começar a navegar na paisagem panorâmica, no conteúdo e no discurso que a Checha Santana nos apresenta em “Além do véu: uma jornada de uma mãe ousada”, arrisco-me em fazer um certo paralelismo entre esta obra e a da canadense Margaret Atwood, intitulada “O conto da Aia”. Nesta breve leitura comparada, o meu foco não é o estilo literário em si (uma vez que a Margaret se expressa num romance e a Checha, numa autobiografia), mas o objecto e a ideologia sobre os quais as duas escritoras se debruçam: em defesa e promoção da diversidade, inclusão, direitos e deveres das mulheres, bem como da redução do desequilíbrio da quantidade e qualidade de oportunidades entre homens e mulheres nas sociedades contemporâneas.

As cenas do romance “O conto da Aia”, escrito originariamente em 1985, acontecem, segundo alguns críticos literários, num futuro “muito próximo”, numa terra onde não há mais livros, jornais, revistas nem filmes. Não existem advogados, uma vez que ninguém tem direito à defesa. Nesse ambiente totalitário e caótico, as mulheres são as sofredoras pré-definidas, invalidadas por uma opressão indescritível. Com esta história apavorante, Margaret Atwood, conhecida por seu activismo social, ambiental e em prol das causas femininas, convida o leitor a reflectir sobre a liberdade, direitos civis, poder, o futuro e, sobretudo, o presente.

Por sua vez, tal como acontece em “O Conto da Aia”, as mulheres em “Além do véu: uma jornada de uma mãe ousada” também se ressentem de escassez de liberdades, incluindo a de expressão e a de escolher a sua própria trilha social e profissional.

Muito longe de se identificar como “feminista”, é nesta conjuntura de escassez de liberdades em que a Checha Santana também convida o leitor a se despir do preconceito e mergulhar no âmago do grito das mulheres que ela representa, visto que a autora se apresenta “em nome das sem voz, sem nome e sem lágrimas, isto é, cujas lágrimas pouco importam”.

Em “Além do véu: uma jornada de uma mãe ousada”, vive-se num contexto em que a Checha Santana expressa pensamentos, sentimentos e crenças através de um discurso inclusivo – onde, tanto nas relações sociais como profissionais, reconhece e respeita as diferenças biológicas entre homens e mulheres e as suas complementaridades naturais; mas, também, ao mesmo tempo, defende um ambiente de respeito pela diversidade, enaltecendo e acreditando em mulheres fortes, com capacidade e coragem para concretizar suas aspirações sem interferências bloqueadoras. Por isso, pela forma, conteúdo e discurso, a presente obra pode ser recomendada para todos aqueles e aquelas que se identificam com estas causas milenares que, cada vez mais, vão se replicando e metamorfoseando nas nossas sociedades.

Para melhor me inteirar na letra e no espírito deste livro, tive de fazer e refazer três tipos de leituras: obliqua, horizontal e de profundidade, tendo, nesta última fase, tentado tirar o véu para poder entrar na alma da escritora. Esta façanha foi relativamente conseguida não apenas através da análise do discurso constante nas linhas e entrelinhas, mas também por meio de uma breve conversa que tive com a autora sobre os reias motivos que a levaram a escrever esta autobiografia.

Na primeira fase da leitura, cingi-me em sobrevoar a paisagem que a obra nos apresenta de forma panorâmica. Neste breve processo ainda meio superficial, consegui observar colinas pintadas de cores quentes e frias, criando, ao mesmo tempo, um contraste de tonalidades e uma complementaridade fenomenal entre elas.

Depois deste exercício panorâmico e atmosférico, aproximei-me mais da obra para contemplar de perto o detalhe do seu conteúdo, porque, conforme a própria Checha Santana sustenta, “como em toda bela pintura, é necessário se aproximar para ver as pequenas rachaduras e imperfeições”. Foi neste contacto um pouco mais íntimo com o livro que percebi que a autora apresenta situações ora por detrás do véu, ora fora deste.

Por detrás do véu, encontram-se situações difíceis e bloqueadoras, como, por exemplo, “O mistério do pai ausente” e “O aroma da injustiça”, entre outras revelações que acontecem atrás da cortina, como sinónimo de obstáculos e injustiças de vária ordem, incluindo a falta de protecção e liberdade.

Estas cenas assombradas são contrastadas por outras que acontecem relativamente fora do véu, como, por exemplo, “As pequenas alegrias”, “Um pilar inesperado”, “A queda da máscara”, entre outras, como sinal de esperança e superação.

Esperança e superação são virtudes que a escritora sugere aos leitores, no sentido de que não se deve perder muito tempo e energia pensando nos problemas, mas na busca de soluções. Aqueles devem servir apenas como lições e uma espécie de alavanca para o alcance de algo melhor.

É por isso que, já na fase de entender o verdadeiro conteúdo desta proposta literária, ficou claro para mim que a autora, mais do que mero prazer de expor a sua história, pretende que esta sirva de fonte de reflexão e inspiração para outras mulheres e a sociedade em geral. É com este propósito que ela afirma, numa das passagens, em jeito de relativo alívio, o seguinte: Agora, olhando para trás, percebo que cada desafio, cada obstáculo e cada lágrima foram fundamentais para moldar a mulher que sou hoje. E espero que a minha história inspire outras mulheres a abraçar seus desafios, acreditar em si mesmas e encontrar força mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Como já me referi, depois das fases de leituras panorâmicas e de conteúdo, senti a necessidade de submergir um pouco mais na obra, analisando o discurso e recorrendo, inclusive, às entrelinhas, por estar ciente de que seria importante ter em conta a intenção dissimulada na comunicação da Checa Santana, porque, geralmente, como já fiz menção em análises literárias anteriores, existe o “não-dito” numa obra, algo que fica por detrás ou no fundo da mensagem explícita.

A minha tentativa de analisar o discurso nas entrelinhas do “Além do véu: uma jornada de uma mãe ousada” faz-me inferir que a autora, ao escrever este livro, tal como acontece em muitas obras de cunho sócio-cultural, usa as categorias do discurso com um certo relativismo, pois os valores do bem e do mal, da novidade e antiguidade, da grandeza e pequenez, da beleza e feiura, da causa e efeito, bem como do maléfico e benéfico de um ser, acto ou fenómeno só podem ser comparativamente mensuráveis a partir de circunstâncias, referências e contextos de indivíduos e sociedades.

Com estas últimas reflexões asserções, pretendo inferir que foi na análise de discurso que entendi que, no livro, a Checha Santana nos apresenta um retrato em que o coração e a cabeça se entendem, porque a autora tenta equilibrar a emoção e a razão. Além disso, esta obra ostenta todos os órgãos dos sentidos, incluindo o sexto, o que faz com que o leitor sinta a magia de usá-los quase em simultâneo enquanto lê, visto que as cenas aqui contadas e cantadas têm aromas, sabores, sons e intuições; são audíveis, visíveis e tacteáveis de forma explícita e implícita, isto é, sem véu e por detrás do véu.

Maputo, 13 de Outubro de 2023

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