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“Ainda é um bocado complexa a interdisciplinaridade artística”

Uma das frases sugestivas de Yuck Miranda, nesta entrevista, é a seguinte: “Cada ser humano é uma história”. De facto, há aí (muita) verdade. E, por isso mesmo, o artista faz das suas histórias e das pessoas ao seu redor algo importante para ser partilhado no palco. Num contexto em que, no país, segundo entende o actor, ainda é um bocado complexa a interdisciplinaridade artística, Por detrás das câmaras, programa de trocas de experiências com artistas (e não artistas) que vai estrear sexta-feira nas plataformas online do 16Neto, é a sua nova aposta. Mais adiante, Yuck Miranda fala também de outros trabalhos seus, sempre ligados a essa infinita necessidade de contar histórias, porque aí se perpetua uma certa eternidade.

 

Comecemos com Transform. Esta é uma peça que inclui no seu interesse criativo os mais novos, certo?

Sim. Transform é uma peça que surge em Cape Town, numa residência artística, em 2018, e foi dirigida por duas directoras: uma sul-africana e outra alemã. Foi um processo super interessante porque é teatro físico feito para crianças das primeiras idades. Uma das coisas que Transform traz é o ensinamento para as crianças de que a vida é uma constante transformação. Tudo está a transformar-se, tudo é vivido numa lei da impermanência. Então, é uma peça com conteúdo muito belo, porque traz um sentido da vida.

 

E de colectividade também…

Claro. E é interessante porque a peça conta com Jessica Lejowa, do Botswana, e aí tivemos de criar uma musicalidade tswana e, talvez, makhuwa de Buanamada Amade, e chopechangana das minhas tradições.

 

É muito África Austral essa peça: Moçambique, África do Sul e Botswana. Foi tudo propositado?

É. E tivemos, nessa residência, contacto com duas actrizes do Uganda, e elas trouxeram uma outra musicalidade e outro ritmo. Foi interessante conversar e ter algumas discussões sobre a nossa cultura e sobre as nossas tradições.

 

Como é isto de criar dois textos: um, que pode ser dito, com ritmo e musicalidade; e outro simplesmente mudo?

Neste processo em específico, uma das coisas que aprendemos ao criarmos a performance foi que as crianças não comunicam com a fala ou com o texto falado muito bem articulado. Comunicam com o corpo, com as expressões e com a música.

 

E as emoções?

Passavam por ser, naquele momento da peça, uma criança. Voltarmos às nossas crianças interiores para conectarmos com outras crianças.

 

Quando está em palco, e nele inclui materiais vegetais, pretende introduzir as crianças para um cuidado ecológico?

Sim. Porque, parecendo que não, as crianças são muito conscientes, já vêm ao mundo empoderadas das questões da natureza, porque estão em contacto com a natureza. É interessante a partir de materiais que a gente habitualmente não usa em palco criar uma performance. Isso originou um outro projecto, que foi feito em Nampula, o Lixo Arte. A partir do lixo à volta da Ilha de Moçambique, criamos uma peça.

 

Porquê na Ilha de Moçambique?

Porque há muitas coisas a acontecerem em Maputo. Quando se pensa nas artes, é Maputo. Eu quis descobrir outros sons, outras musicalidades, outros ritmos e outros Moçambique. Foi interessante por ter sido a minha primeira vez lá.

 

Portanto, o Lixo Arte é uma espécie de chamada de atenção para um cuidado com o corpo da natureza?

A ideia que quis trazer é a de que a relação com o lixo já não é de repugnância. Se eu criei este lixo, eu posso cuidar e transforma-lo em outra coisa. Só para dar um exemplo, na Ilha [de Moçambique] há galerias, há obras que são feitas com panelas velhas. As crianças não se davam conta disso. Depois de verem a peça, houve uma consciência e uma formação de um público na maneira de olhar para as artes.

 

E o Karingana wa Karingana também encaixa-se nesse interesse de despertar consciências, através de histórias?

Este é um projecto que me interessa muito, porque nós viemos de uma cultura da oralidade, que se vai transformando com o tempo. Acho que há um sentido de se preservar essa oralidade. E o Karingana wa Karingana traz essa ideia da consciencialização da oralidade moçambicana e, talvez, africana. Quando o projecto começou, eu peguei nas histórias que a minha avó e bisavó me contavam, aos cinco ou seis anos. Não me esqueço que neste processo de criação, depois de me contarem histórias às metades, eu pedia mais. Uma delas dizia-me que eu as continuasse da minha maneira. Estas histórias folclóricas transcendem fronteiras, porque nós já nem sabemos de onde vêm. Será que são nossas? Será que não são dos indianos ou dos portugueses que andaram aqui?  Será que não são histórias do Botswana ou da África do Sul?

 

Os seus projectos de palco são formas de continuar com as histórias que lhe foram contadas pelas suas avós?

Não sei se é dar continuidade… Acho que ao vivermos escrevemos histórias. Certas, erradas, incompletas, escrevemos histórias. Cada ser humano é uma história. Não interessa se deixou um legado ou não, se terminou ou não, se foi poético, terror ou horror ou não, não importa. O que importa é que há pessoas e há histórias.

 

E importa que as histórias influenciem atitudes?

Importa que provoquem. Podem influenciar ou não. A influência é uma questão orgânica. Acho que qualquer história provoca alguma coisa.

 

E uma das suas novas histórias é Por detrás das máscaras, que terá espaço no 16Neto.

Sim. O 16Neto fez-me o convite de apresentar o programa Por detrás das máscaras, que vai trazer sempre três convidados do meio artístico, artistas ou não artistas, para esmiuçar um monte de conteúdos que vêm a tona: as sensações, os pensamentos e as problemáticas dos artistas. Será uma conversa de artista para artista que vai desmistificar coisas que muita gente não sabe, não tem noção, e sobre esta coisa de arte dar ou não dinheiro. Lembro-me que ano passado estive em Paris, e um amigo meu, moçambicano que vive na Itália, perguntou-me: “levas a Paris aquelas tuas coisas de teatro”…

 

Aquelas tuas coisas…

É, e a ideia com Por detrás das máscaras é desmistificar se são “aquelas minhas coisas de teatro” ou se é um trabalho como qualquer outro. O projecto vai estrear próxima sexta-feira, com três convidados de gerações diferentes, com disciplinas artísticas completamente diferentes e com histórias completamente diferentes. Em cada programa há um tema a ser discutido por três convidados, que também vão conversar sobre se os artistas conhecem ou não trabalhos uns dos outros.

 

E conhecem?

Acredito que sim. Ainda há uma tendência de os músicos ficarem na música, de os actores ficarem no teatro e de os cineastas ficarem no cinema. Ainda é um bocado complexa esta interdisciplinaridade artística. Mas acredito que já começa a acontecer. As artes nunca estiveram separadas e hoje reparo que há muita gente consciente da necessidade de voltarmos a esse lar artístico, a esse encontro ou reencontro. Portanto, Por detrás das máscaras será uma série de programas gravados e disponibilizados pela internet, no canal do 16Neto, e foi financiado pela Embaixada da Suíça, que financia toda a estrutura do 16Neto. O programa terá em média entre 20 e 30 minutos. É um programa com um conceito completamente diferente.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro que escutem Lenna Bahule, Mingas, Elvira Viegas, Zaida Lhongo e Fany Mpfumo.

 

PERFIL

Yuck Miranda é um actor e performer com 10 anos de experiência em teatro, actuando também na música e na dança. O artista tem realizado performances com recurso à sua expressão corporal para criar trabalhos focados na defesa de crianças, LGBTQ + e igualdade de gênero. Desde 2010, trabalha com companhias de teatro do país e participou em algumas experiências internacionais. Por exemplo, participou no Transform Tour 2019 (Kigali, Ruanda; Cidade do Cabo e Joanesburgo, África do Sul; e Harare, Zimbabwe) e no ASSITEJ 2019 Norway, Gathering Festival. Em Paris (França), Yuck Miranda desenvolveu a fase de pesquisa do seu projecto vitalício: “Identidades não identificáveis”, focado em narrativas de membros LGBTQ + em diferentes países.

 

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