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A Última Páscoa: Pós-Deus, Pós-Pátria, Pós-Povo

Resposta ao Texto “A Última Páscoa dos Moçambicanos”, de Severino Ngoenha

 

Professor Severino Ngoenha,

O seu texto é uma elegia poderosa. Uma convocação ética. Uma denúncia litúrgica.

Mas permita-me, com a devida raiva lúcida que a nossa pátria exige, ousar continuar onde o seu Domingo termina — ou talvez, onde já não há mais tempo para esperar por ele.

Uma amiga muito lúcida, Ângela Maria Serras Pires, ao ler o seu texto, sugeriu este título: “A Frelimo destruiu a alma da nação”. É um título, e ao mesmo tempo, uma frase de corte político.

Mas deixemos os títulos. Professor, li e reli o seu santo texto com muito thauma; senti gosto enorme nas entrelinhas e no seu jeito único de escrever. E, a partir disso, fiz minhas anotações anatômicas, que aqui partilho.

 

  1. “Há demasiado tempo que Moçambique vive entre a cruz e o túmulo…”

Professor, quer dizer que a nação moçambicana está presa num tempo litúrgico? Entre a Sexta-feira da crucificação e o Sábado do silêncio?

Mas será que Moçambique precisa dessa cronologia cristã para se pensar a si mesmo?

Não é essa metáfora já um cárcere simbólico? A cruz, o túmulo, o sofrimento — tudo isto não são heranças coloniais do imaginário europeu-cristão?

Penso que não vivemos entre a cruz e o túmulo. Vivemos, isso sim, num presente político morto-vivo, onde a cruz é um logotipo partidário e o túmulo é a urna eleitoral.

Aqui, não se ressuscita ninguém — nem sequer a esperança.

E se há uma “última Páscoa”, como escreve o Professor Ngoenha, então é porque todas as outras fracassaram.

Mas não basta poetizar o sofrimento, nem transformar a Sexta-feira Santa em metáfora política.

É preciso nomear o culpado. Não há redenção onde não há verdade.

 

E a verdade, professor, é esta: a Frelimo destruiu a alma da nação.

Carregamos um país crucificado, sim — mas foi crucificado pelo Estado, com a cumplicidade das igrejas.

Cristo não morreu por nós. Morreu connosco — no desemprego, na fome, no tribalismo.

E continua morrendo, todos os dias, com cada jovem assassinado no nascimento de sua consciência política.

  1. “A cultura da Sexta-feira tornou-se a estrutura invisível do nosso quotidiano.”

Será mesmo invisível? Ou estamos diante de uma estrutura escancaradamente visível, sustentada por um Estado que se alimenta do medo e da miséria?

Professor, não seria mais honesto dizer: a Sexta-feira foi institucionalizada — pelo partido, pela igreja, pela academia — e tornou-se estrutura visível, e legitimada?

Não é mais cultura do sofrimento.

É a indústria da opressão.

Professor, sua Sexta-feira é nobre, mas falta-lhe a denúncia.

Falta-lhe o nome do carrasco.

Falta-lhe o nome do deus que o povo adora enquanto é espoliado: o deus-Presidente, o deus-Pastor, o deus-General.

Essa é a cruz real.

A cruz da corrupção.

A cruz do silêncio comprado.

A cruz da esperança vencida.

  1. “Nessa Sexta-feira eterna, as crianças morrem de fome… o povo morre de silêncio.”

Mas quem é que construiu essa eternidade?

Quem sustentou os rituais do silêncio?

Quem ensinou o povo a jejuar pela salvação e votar pela opressão?

Professor, não foi a mesma igreja que abençoou as armas do colonizador, que agora abençoa os palanques da Frelimo?

 

Não foi a teologia da cruz que nos fez aceitar que o sofrimento redime?

Pois eu digo: o sofrimento embrutece, não redime.

A cruz não é metáfora — é mecanismo de dominação. E aqui professor a fé e política de um político é o sinônimo.

  1. “O Sábado é pior. Porque já não há grito — só ausência.”

E será que ainda há tempo para gritar, Professor?

O grito, aqui, tornou-se prova de crime.

Quem grita contra o sistema é terrorista.

Quem escreve contra a cruz, é herege.

Quem pensa diferente, é morto civil.

E a ausência?

Não é divina — é programada.

É a consequência da má-fé institucionalizada.

E depois… o Sábado.

Não o Sábado de espera — mas o Sábado de apatia.

Onde a religião se ajoelha ao lado do Estado para rezar pelo status quo.

Onde os intelectuais se prostituem em projectos financiados pelo Banco Mundial, FMI e os teólogos se calam por medo de perder a bênção presidencial.

A verdade é esta: a intelligentsia moçambicana perdeu a coragem de pensar fora do

sistema que a sustenta.

Peter Sloterdijk escreveu:

“Vivemos numa era de cínicos esclarecidos — sabem o que fazem, mas continuam a fazê-lo.”

 

Eis o retrato dos nossos dirigentes.

E dos nossos professores.

E dos nossos chefes religiosos.

 

É verdade, professor: vivemos um Sábado.

Mas é um Sábado sem sombra de Domingo.

Porque para ter Domingo é preciso um povo que diga basta.

E o nosso povo, cansado, jejuando por ignorância e votando por desespero, já nem distingue fé de propaganda.

  1. “Mas a história — a verdadeira história — não termina aí. Há uma outra cultura

possível: a cultura do Domingo.”

Aqui, Professor, permito-me discordar radicalmente.

A “cultura do Domingo” é uma esperança mística.

É o prolongamento da lógica cristã: após o sofrimento, a redenção.

Mas quem nos garante o Domingo?

Quem nos prometeu essa ressurreição?

Nietzsche já nos advertiu: o “Deus do Domingo” está morto.

E mais: em Moçambique, foi a Igreja que o sepultou — com dízimo, missa e a bênção presidencial.

  1. “É tempo — último tempo — de dizermos: ‘Basta!’”

Mas quem dirá esse “basta”, Professor? O povo ainda acredita.

Nos partidos.

Na igreja.

Na televisão.

No pastor.

No boletim de voto.

E quem não acredita, cala — com medo.

Então, esse “basta” só virá quando negarmos todas as estruturas que ainda sustentamos por hábito e fé.

Eu digo: não precisamos de um Domingo.

 

Precisamos de ateísmo político.

De raiva lúcida.

De ética niilista.

De um corte radical com os messianismos, tanto religiosos quanto partidários.

Nem Cristo. Nem Frelimisto. Moçambique não precisa de milagres.

Precisa de raiva lúcida. De revolta sem mística deísta nem messianismo frelimista.

De uma Páscoa sem Cristo — e sem Frelimisto. Não há redenção possível enquanto a mentira for o idioma nacional.

Páscoa significa passagem. Mas Moçambique não passa.

Está preso — Preso à nostalgia colonial, à incompetência dos “libertadores”, à ilusão infantil de que “Deus proverá”.

Mas Deus fugiu.

O Filho morreu.

E ninguém vem.

Georges Bataille disse:

“O ser humano só se realiza quando ultrapassa os seus próprios limites, na vertigem, no sacrifício, na negação de si.”

Mas aqui, ninguém ultrapassa nada.

Vivemos o mesmo ciclo, o mesmo trauma, a mesma mentira:

“Tudo vai melhorar”, dizem.

Mas não vai.

Melhorar é verbo interdito num país onde:

— pensar é crime,

— exigir justiça é terrorismo,

— falar verdade é provocação.

Não há mais espaço para profetas eleitorais.

 

Nem para messias de palanque.

A esperança morreu afogada na corrupção, e ninguém chorou o funeral.

O que temos são:

Igrejas-empresas institucionalizadas.

Partidos-seitas institucionalizados.

Pastores-vampiros institucionalizados.

É um povo anémico que confunde salvação com sobrevivência.

Que Páscoa pode haver num Estado que crucifica a juventude?

Que mata o sonho nas aldeias?

Que transforma o diploma em papel higiénico?

A nossa única esperança — se ainda existe — é a morte de todas as esperanças fáceis.

É o ateísmo político.

É o niilismo como método.

É a raiva transformada em ética.

Günther Anders disse:

“O mundo tornou-se tão monstruoso que o verdadeiro escândalo é suportá-lo.”

Pois que nos escandalizemos!

Que deixemos de aceitar!

Que sejamos heresia e incêndio — não liturgia, nem conformismo.

  1. “Se esta for a última Páscoa dos moçambicanos, que ao menos ela seja memorável…”

Pois que seja.

Mas não pelo cordeiro.

Pelo grito.

E o grito, hoje, não é oração e nem alelluia.

É confrontação.

 

É heresia.

É coragem de cuspir no altar da Frelimo e no púlpito dos vendilhões da fé.

Nietzsche matou Deus.

Mas em Moçambique professor, foi a igreja que O enterrou — com missa, incenso,

dízimo e bênção presidencial são eles que ditam as regras.

Professor, aqui a crucificação virou contrato público.

A ressurreição virou imposto.

E o inferno… é viver aqui, esperando um céu que nunca virá.

Professor Ngoenha,

O seu texto oferece um grande densidade simbólica e poética.

Mas a metáfora cristã — cruz, túmulo, sábado, domingo — já não serve como chave de leitura para uma nação que precisa, antes de tudo, descrer, decolonizar, destituir, e renascer.

Moçambique não precisa de um novo Domingo.

Precisa de um novo idioma.

Sem crucificados.

Sem redentores.

Sem Deus.

Sem partido uno.

Apenas um povo lúcido, insurgente, e sem medo.

Professor, a língua é o novo Domingo.

Se há algo que pode nos salvar — não será o Cristo, nem a Cruz e nem partidos Frelimo, Renamo, MDM, Podemos, Anamalala, Nova Democracia…

Será a língua.

Mas não essa — a língua do colonizador, da catequese, do partido.

 

Será a língua do povo. Do Shimakonde, do Kimuani, do xichangana, do echuwabo, do elomwe, do bitonga, do emakhuwa, do xindao, do xinyanja, do xisena, do ximanica, do xiyao, do xironga…Étcetera Étcetera.

Porque só se pensa com as palavras que se vivem.

E Moçambique vive em muitas línguas — mas governa-se em poucas.

A nossa salvação não está na ressurreição. Está na tradução do país para si mesmo.

Se esta for mesmo a Última Páscoa dos Moçambicanos, que ela não seja lembrada pelo cordeiro — mas pelo grito de um povo muito aturado e cansado.

Não pela fé.

Mas pela coragem de negar tudo o que nos mantém mortos.

Não pelo Domingo simbólico.

Mas pela escolha concreta de matar a mentira que nos crucifica há cinquenta anos.

A última Páscoa… talvez não precise de ressurreição.

Mas de ruptura.

O Fim da Páscoa

 

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