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A representação das “infâncias” na obra Poemas à sombra da infância, de Nick do Rosário

Por: Pedro Manuel Napido

A obra Poemas à sombra da infância, de Nick do Rosário e ilustração de Fiel dos Santos, reúne os requisitos exigidos para este tipo de género literário porque preside o jogo do fazer poético, com uma dimensão lúdica, sensorial e rítmicas (visual, sonoro e estrutural) percebidos nas camadas sensíveis da linguagem. Os poemas aqui contidos, podem ser escutados, vistos, cantados, tocados e sentidos profundamente pela totalidade do corpo e alma. Os mesmos são abertos, o que quer dizer que o leitor produz o sentido que a sua história de vida, suas emoções, lhe ajudem a construir.

Os poemas tematizam as varias “infâncias” na sociedade moçambicana, tentando mostrar como essa arte pode proporcionar reflexões e meios para que as crianças compreendam e, ao mesmo tempo, questionem e problematizem o mundo em que vivem, principalmente envolvendo as questões de pobreza e desigualdade infantil. Além disso, constatamos que ainda é pequeno o número tanto de obras poemáticas de qualidade quanto de docentes que desenvolvam um trabalho que envolva em primeiro lugar o prazer da leitura, muito devido à falta de formação na mediação de leitura literária.
Zappone (2005) ressalta que “aspectos como o vocabulário e as construções sintáticas devem estar em consonância com o público a que se destinam”. No caso desta obra, evitam-se determinados infantilismos porque o autor não duvida a inteligência e as capacidades do público leitor; não se usam diminutivos, construções sintáticas repetitivas, nem figuras de linguagem complexa.

Por seu turno, Gonçalves (S/d) afirma: “a poesia tem uma importante função no desenvolvimento da personalidade infantil, uma vez que ela permite a comunicação da criança com a realidade, possibilitando a investigação do real, ampliando o entendimento e a experiência de mundo através da palavra”. É claro que a criança é exigente e sabe identificar o que tem valor. Assim, ao selecionar a poesia, é necessário verificar aquela que saiba valorizar a linguagem, em que a relação entre as palavras, a sonoridade, as imagens, o humor, a forma dos versos sejam organizados de modo especial.
Muitos professores, embora alguns conscientes do valor da leitura, continuam rejeitando a poesia na sala de aula, sob a alegação de que as crianças não gostam desse género literário. Pode ser que os mesmos professores tenham dificuldades de mediação desse tipo de texto e sua especificidade: o seu carácter sonoro, polissémico e lúdico pois o mundo infantil, tal como o mundo poético, é permeado de imagens, fantasia e sensibilidade que contribuem para o seu crescimento. Para (BORDINI, 1989. p. 63) “[…] na poesia, o aprendizado possível se produz pela própria estrutura do poema, que seduz e estimula o leitor fisicamente pelos ritmos e efeitos acústicos e intelectual e afetivamente pelas representações ou vivências que suscita”.
Apesar do avanço da tecnologia e na forma de acesso à cultura através da televisão, da internet ou do universo virtual, a ligação da criança com a poesia ainda continua forte. Por vezes, a própria escola promove o distanciamento entre a criança/poesia o estudo, a leitura e a prática de trabalho com o texto poético. O professor precisa conhecer a produção actual e as especificidades desses textos para este público, acreditando no poder transformador da literatura, em geral e sensibilizador da poesia, em particular.

A leitura desta obra Poemas à sombra da infância proporciona uma abertura para o mundo. O mergulho em cada poema emergem-se camadas simbólicas que visualizem o universo interior e exterior com mais claridade. Entra-se no território da palavra com tudo o que se leu até então e a volta se faz com novas dimensões o que leva a re-inaugurar o que se sabia antes.

Isto se justifica porque leitura literária relaciona-se à necessidades humanas porém, não menos importantes que as demais. Muitas coisas que não gostamos realizamos por necessidade, por exemplo: acordar muito cedo, tomar banho, comer, trabalhar um determinado número de horas para garantirmos o pão de cada dia nas nossas famílias, pagar imposto, pagar portagem, dormir, estudar, praticar actividade física, etc. Por isso, quando não dominamos os segredos da leitura literária, uma parte da nossa formação espiritual, humana e cultural fica interditada ou seja, algo nos faz falta e não descobrimos os bastidores do mundo e da vida.

Tomemos o primeiro poema: “Lixo luxo” na pg. 9, como exemplo:
Lixo luxo
Lixo
luxo
o luxo floresce no lixo

Lixo no chão
não
lixo luxo
na sépia mão
do bruxo

O poema ultrapassa a superficialidade e a ordem habitual do lixo (resíduos sólidos) para conhecer as coisas, a beleza e a profundidade que residem não só nas ideias mas sobretudo na linguagem, que o modo novo de perceber e dizer o mundo e o contexto urbano em Moçambique. Se aproxima a trava-lingua, de origem tipicamente popular, essa brincadeira, divertida e poética que desafia as habilidades psicomotoras e psicolinguísticas, induzindo a um mergulho na tradição popular e atiça a inteligência, a ludicidade, a graça e gostoso riso ao público leitor.

O mesmo poema apresenta uma similaridade entre os sentidos e a sua forma de expressão tornando palpável através do jogo silábico, aliterações, assonâncias e solicita a sintonização auditiva. A leitura em voz alta pode envolver o leitor numa dimensão ampla do corpo e do interior de modo que o adulto, enquanto produtor do lixo urbano, escute e reflicta sobre ele.

Mais ainda, o poema “Lixo Luxo” para que tenha maior efeito artístico, exige interação e participação aprimorando a percepção humana nas suas relações com o mundo, busque sintonizar-se de forma harmónica e equilibrada com muitas crianças que se sujeitam ao lixo produzido na cidade e depositado na zona periférica. Isto parece demonstrar que o espaço urbano se transformou em lugar de castigo para algumas crianças que, em consequência, perturba o seu cotidiano e que enfrentam duras provações na vida escolar.

Na nossa sociedade, em geral e na cidade de Quelimane, em particular vivemos em tempos difíceis que tanta coisa joga contra nós: a globalização nos impõe provocações que não deixaremos sem resposta. Esta obra convoca o adulto a se solidarizar com o mundo infantil e não apenas se deliciar com seu sofrimento ancorado na lixeira em busca de sobrevivência. Outro exemplo, é sobre o poema “Cacimba dourada”, na página 10.

Cacimba dourada

No verão,
tarda o sol
a partir,

e, chegada a noite,
a lua cheia
reluz em toda a aldeia.

Vem atrás a madrugada,
largando no seu rasto
cristais de cacimba dourada.

Neste campo poemático, o autor apresenta uma serie de elementos da natureza: o verão, o sol, a noite, a lua cheia, a madrugada e a cacimba. O público leitor deve saber que o verão é geralmente incorporado na literatura para simbolizar alegria, aventura, plenitude, auto-aceitação e a busca do amor. Neste poema, o verão, representa a celebração da beleza, do calor e do crescimento que vem com a estação. Por seu turno, o sol é o símbolo da consciência dispersa que irá reconstituir a sua homogeneidade no seio da obscuridade interna. Renascer como sol da manhã significa, na linguagem dos mistérios, renascer de si próprio.

Por seu turno, a noite está repleta de temática nocturna: a insónia, o sono, o sonho, a escuridão, o sombrio, sugestão da morte estimulada pelos ares nocturnos, a sepultura, a feitiçaria e o túmulo. Neste poema, a convocação do ambiente nocturo (a lua cheia, a madrugada, a cacimba) pode ter sido intencional mediante a imaginação concreta que alia a sensibilidade à mundividência infantil o que faz da noite tenha um leque de possibilidades psíquicas para a sua maturidade. Como afirma Simiscuka (2007, p. 53) “[…] Devido ao facto de a noite surpreender, de certo modo, a dramaticidade, proporcionando um afastamento do individuo em relação ao sofrimento, à dor da existência, ela pode simbolizar, também, a purificação do pensamento, das ideias, da memoria; a suavização dos anseios mais elevados, dos desejos e afectos sensíveis […] ”, tal como se apresenta nos versos: “e/ chegada a noite/ a lua cheia reluz em toda a aldeia/”.

Olhemos para o poema, “O Jogo”, página 14, a seguir:

O Jogo
Um, dois, três
levamos uns pastéis

Quatro, cinco, seis
à casa da dona Inês

Sete, oito, nove
se alguém provar, que aprove

Dez, onze, doze
Os gulosos pastéis de nozes

Treze, catorze, quinze
talvez a mamã autorize

Dezasseis, dezassete, dezoito
a comê-los em vez de biscoitos

Dezanove e por fim vinte
o pessoal esganado
come, come, sem requinte

Este poema faz lembrar temas de fome e desejo de comer ou metamorfoses através da boca em alguns contos clássicos destinados ao público infantil: “O pequeno polegar”; “João e Maria”; “O gato das botas”. Na literatura, o alimento é entendido como tendo um cunho cultural, sendo este poema organizado como um cardápio através do qual é oferecido um pequeno almoço completo ao leitor o que permite reflectir sobre a poesia como alimento, em que medida este mesmo alimento desempenha um papel significativo no imaginário infantil e, inversamente, tanta criançada ainda passando à fome.

Navas (2017, p. 5) afirma: “Considerando que o gosto alimentar é cultural, e, portanto, pode e deve ser constantemente melhorado, cabendo ao professor ajudar o aluno a saborear, auxiliando-o, por meio de uma reeducação alimentar, descobrindo os mais intensos sabores dos textos literários”.
A citação mostra que este poema pode contribuir para o trabalho com a literatura infantil em sala de aula porque a obra propõe de atrativo e de nutritivo que pode ser servido aos pequenos leitores reconhecendo que a comida e a leitura são actividades análogas.

Mais ainda, este pode ser percebido através do olhar porque a disposição gráfico-visual tem importância fundamental, pondo a mensagem na sua configuração concreta. O mesmo como tantos outros se autoconstrui à medida que se alarga, cresce. O primeiro verso inicia por um, dois e três e o último atinge o número vinte. Mostra, plasticamente, o dinamismo e a elasticidade da forma de construção. Pode ser lido através de vozes, umas saindo de dentro das outras: um grupo conta e outro responde. A leitura fará mudanças da forma em processo de transformação na medida que se amplia.

As ilustração na obra tem um papel fundamental, podendo facilitar às crianças o seu contato com o livro. Mais ainda, o tipo de letra, o papel, o projeto gráfico, o formato concorrem para a atribuição de sentido ao texto.

Nesta obra, o texto imagético se compadece com o verbal. As cores amarela, castanha, azul, principalmente, são do gosto do público leitor por serem vivas. A representação da arquitetura africana (pg. 23) subverte os castelos representados pela literatura infantil clássica. A personagem criança está patente tanto no texto verbal como imagético.

Temos a ilustração arquitetura tradicional do estilo moçambicano, sustentável de baixo custo que proporciona à população uma habitação confortável e adaptada ao seu modo de vida, tanto a nível social, como económico, construída sem nenhuma licença nem intervenção ordenadora das autoridades competentes. “Os materiais utilizados na construção destas habitações são na maioria os tradicionais, nomeadamente os tijolos maciços de areia ou argila, fabricados no local e secos ao sol ou cozidos, estacas de madeira, argila, bambu, cordas feitas com fibras naturais, capim nas coberturas e, em alguns casos, tintas feitas a partir de materiais naturais” (RIBEIRO, 2015, p. 58).

A arquitetura africana foi influenciada pela cultura islâmica, devido ao estabelecimento dos mercados árabes em África e a cultura swahili foi a que mais se difundiu. Nos assentamentos swahili as casas pertencentes aos habitantes mais ricos, normalmente mercadores, eram retangulares, feitas de pedra, com cobertura plana, parecidas com as casas da Arábia meridional (Ribeiro (2015, p. 49) Apud Garlake, 2002 pp. 167-187).
Contrariamente à realidade capitalista, o quintal ou pátio, sem vedação para o isolamento social é normalmente o espaço fundamental da casa. É nele que se concentra a vida quotidiana da família, onde se realizam todas as tarefas domésticas, e é, em simultâneo, a sala de estar, o espaço de convívio da família, a cozinha, o local de trabalho, dos jogos e das brincadeiras infantis.

Fig.1
O jogo (salto de corda) e a brincadeira na pg.24 amplia a ludicidade e herança da cultura moçambicana. A simbologia mais conhecida da árvore é de símbolo da vida, representando a perpétua evolução, sempre em ascensão vertical, subindo em direção ao céu. Na cultura moçambicana para além do valor medicinal, algumas árvores simbolizam o sagrado e nelas se instalam os santuários. A conexão das raízes com os demais elementos das árvores se parece muito com a relação entre mães e filhos. Os leitores devem crescer sabendo que tal como as árvores, somos feitos de ciclos de vida-morte-vida que se repetem infinitamente. Uma árvore não fica florida e cheia de frutos durante o ano todo. Ela também passa por períodos de recolhimento, em que as folhas secam e caem, mas sempre volta a se reerguer. Os leitores devem aprender a olhar para a vida da mesma forma, a respeitar e acolher os desafios que encontramos pelo caminho. Afinal de contas, a vida sempre encontra uma forma de renascer.

Mais ainda, o jogo e a brincadeira do salto à corda trata-se de uma catividade com características cerimoniais diferenciadas, conjugando-se a música, a dança e o salto à corda. De acordo com Prista et all. (1992, p. 56) as participantes costumam vestir-se especialmente para o efeito e os homens participam apenas como instrumentistas. As participantes formam em fila e inicia-se o canto andando à volta do terreno, em passo rítmico. A partir dai uma a uma vão saltando à corda: em pé, sentada, deitada, de joelhos, etc. O nzope é no entanto, particular pela sua especularidade e pelo facto de ser praticado regularmente por mulheres adultas. É deste modo que o público leitor irá herdar a cultura moçambicana, passando de geração para geração.

Fig. 2
A ilustração a seguir, na página 27, visualiza-se alegria, descontração, amizade, acção intensa, perceção fantástica do mundo de modo que o leitor entenda o que é viver num lugar humanizado e que o sério e o engraçado caminham juntos.

Fig. 3
Dando especial atenção na relação entre texto verbal e não-verbal percebemos que, nesta obra, as ilustrações vêm a complementar as mensagens que são produzidas por intermédio dos textos, dando ênfase ao conteúdo do texto escrito, explicando detalhes de cada cena, preenchendo lacunas, acrescentando novas idéias e apresentando outras características e especificidades das personagens e do contexto dos poemas. Percebemos a predominância das imagens no plano geral mas outras técnicas também são utilizadas: o plano médio e close. As mesmas estão inseridas no nível de formação da imagem compreendida pelo ‘imaginário’, que se apresentam como substituição a um real ausente. Essas imagens são representadas no campo da denúncia ou rejeição assim como jogo de possibilidades, permitindo a entrada no campo simbólico.

A maneira como os poemas são desenvolvidos e a relação dialógica entre texto verbal e texto não-verbal permitem a reflexão de que têm a intenção de formar no leitor um certo modo de pensar o mundo em relação às “infâncias” na nossa sociedade e, ao mesmo tempo, sugerindo como deveria ser, por exemplo com relação às crianças que sobrevivem do lixo, da fome, da exclusão, da pobreza, sem abrigo, da violência, sem direito à educação e à ludicidade, entre outras privações.

Referências

BORDINI, M. da G. Poesia e consciência lingüística na infância. In: SMOLKA, A. L. B. et all. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, pgs. 53-68.

GONÇALVES, M. de L. B. (S/d). Poesia infantil: uma linguagem lúdica. file:///D:/DISC%20C/Desktop/LIJ/POESIA_INFANTIL_OK.pdf.

NAVAS, D. Resenha do livro “O alimento na literatura: uma questão cultural”. Revista Linhas. Florianópolis, v. 18, n. 37, p. 308-312, maio/ago. 2017.
PRISTA, A.; TEMBE, M. e EDMUNDO, H. (1992). Jogos de Moçambique. Maputo, Instituto Nacional de Educação Física.

RIBEIRO, M. C. (2015). O Contributo da Arquitetura Tradicional para uma Habitação “Informal” Sustentável em Moçambique. Lisboa, Instituto Universitário de Lisboa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.

SIMISCUKA, M. I. O símbolo da noite em o “Cancioneiro” de Fernando Pessoa. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 127 ps. Disponível em: file:///D:/DISC%20C/Desktop/LIJ/Simbologia%20da%20noite.pdf. 11 set. 2023.

ZAPPONE, M. H. Y. A leitura de poesia na escola. In: MENEGASSI, Renilson José (Org.). Leitura e ensino. Maringá: EDUEM, 2005.

 

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