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A porta que Mia não abriu

Por: Chádia Sofia Chicohe

Considerado autor de um dos melhores livros africanos do século XX,Terra sonâmbula, vencedor do Prémio Camões 2013 e um dos nomes mais sonantes da literatura mundial, Mia Couto é autor do texto “A porta”, publicado no livro O país do queixa andar (2003), que reúne um conjunto de crónicas jornalísticas sobre vários temas da sociedade moçambicana.

Em geral, “A porta” é um texto que, a partir de uma narrativa polissémica, representa, através de um porteiro sob comando de “vozes desconhecidas”, factos comuns à sociedade moçambicana, os quais nos conduzem a um horizonte intrigante sobre a postura e as relações socioculturais de Moçambique.

Através da crónica de Mia Couto, somos levados a reflectir sobre Moçambique e sobre a possibilidade de uma “porta” poder descrever a realidade de um povo.

Além do título que desperta a nossa atenção, na estrutura do texto encontramos uma série de diálogos mediados por um narrador que nos intriga com várias eventuais perguntas. Que porta seria essa? Quem pode abri-la? Não obstante estas questões, o texto deixa-se enriquecer pela sua plasticidade lexical, que faz com que o autor e/ou leitor brinque com as palavras e com isso crie determinadas conexões.

Ainda na estrutura do texto, encontramos personagens que, na sua maioria, apresentam o mesmo atributo “moçambicano”, mas com núcleos diferentes. Por exemplo, “Indiano moçambicano”; “mulato moçambicano”; “moçambicano branco”; “negro moçambicano”.

Duas das personagens apresentadas pelo narrador chamam a nossa atenção pelas suas particularidades: “um estrangeiro mandando a inglês” e um “porteiro” que não se deixa caracterizar. Mas quem seria esse porteiro?

Ao longo do texto, também nos é apresentado um conjunto de elementos que colocam à tona algumas questões, tais como: O que significa ser moçambicano? E o que significa uma porta abrir-se de Moçambique para Moçambique?

Na escrita de Mia Couto, em “A porta”, somos assaltados por um conjunto de temas expressos durante as intervenções das personagens. Mas um tema, em particular, atrai a nossa especial atenção, a construção da imagem de Moçambique através de um porteiro. Vejamos, a título de exemplo, as seguintes passagens:

(1) Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:- Não abras, essa gente tem mania que passa à frente!
E a porta não foi aberta. (2) Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:
– Não deixa entrar, esses não são a maioria.
(3) Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:
– Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…
(4) Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso.
(5) Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.

A partir das passagens (1), (2), (3) e (4), poderíamos formular o seguinte: que a porta representa uma entidade e o porteiro a consciência dessa entidade, que também é guiada por outra consciência: “as vozes”. Porém, na última passagem (5), percebemos uma atitude alienante do porteiro e a ênfase na imagem do “estrangeiro, mandando a inglês”, como superior.

Não obstante, verifica-se no texto, quando a porta é comprada pelo estrangeiro, o silenciar das vozes que outrora gritavam ao porteiro. Portanto, observamos aqui a submissão do porteiro a um ideal e, eventualmente, a um regime.

Concluindo, “A porta” é um bom exercício de cidadania, que nos leva a questionar o seguinte: Será que somos independentes, se considerarmos que o materialismo estrangeiro define o nosso destino, como povo? Até quando precisaremos de estar submetidos a um regime opressor e que coloca fronteiras entre nós? Comparando os cenários da crónica de Mia Couto com a actualidade moçambicana, será que o porteiro representa a imagem do nosso país?

 

Bibliografia
– Couto, Mia (2003). O país do queixa andar. Maputo: Editorial Ndjira.

*Texto escrito como actividade da oficina A escrita e a crítica literária e jornalística, orientada pelo ensaísta e jornalista José dos Remédios, no Centro de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane.

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