Com mais de dez anos de percurso no cenário do rap moçambicano, Caligrafia Poderosa (pseudónimo de Luciano Júnior) consolidou-se como uma voz comprometida com questões sociais e culturais, sobretudo na província de Tete. Em 2025, lançou a música intitulada “A Minha Pele”, produzida por Filósofo, e gravada na Gawa Records. A obra retrata as experiências de pertença e exclusão racial, trazendo à superfície debates urgentes sobre identidade, desigualdade e preconceito. Desse modo, neste artigo, é nosso objectivo explorar as diversas formas pelas quais o sujeito poético cria a sua metáfora da pigmentação, mantendo foco em aspectos de escrita criativa, destacando detalhes linguísticos, culturais e até artísticos que possam ser pertinentes para a nossa crítica.
O negro e a memória da escravidão
O sujeito poético abre a canção afirmando: “Eu sou preto como a sombra que reflete como a luz/ Eu sou preto escravizado, acorrentado numa cruz/ Preto sem direitos, que dizem ser independente/ Rejeitado pela cor, encarcerado no continente”. Através desta enunciação, resgata a herança de violência histórica da escravidão e estabelece uma ligação com a condição contemporânea do negro em Moçambique. Com um tom de denúncia que evoca memórias colectivas, o sujeito poético recorda a marginalização estrutural que, infelizmente, ainda é presente, nos dias de hoje.
Tal abordagem dialoga com Azagaia, em “Cães de Raça”, quando o rapper denuncia a condenação social dos mulatos, que passo em citação directa: “… na Tuga, o assimilado, português de segunda/ Na terra, condenado a mecânico ou prostituta/ Ninguém vence a minha luta/ Se é mulato e arranja job, dizem que deu a fruta”. Ao comparar expressões como “encarcerado” (Caligrafia Poderosa) e “condenado” (Azagaia), sublinhadas anteriormente, nota-se uma convergência semântica que reforça a ideia de uma prisão simbólica e uma limitação de horizontes impostas pela cor da pele.
O branco e o sarcasmo da dominação
Na segunda estrofe, o sujeito poético encarna a voz de um homem branco, vociferando: “Eu sou branco detentor da riqueza mundial/ O branco que vocês temem, vosso pai celestial/ Aquele que vocês imploram para sobreviver/ E em troca disso, até explora por tanto prazer”. Aqui, observa-se um discurso irónico e arrogante que desnuda as assimetrias globais de poder, remetendo para as heranças coloniais e para a exploração contínua dos recursos africanos, por aqueles que outrora exploraram a nossa terra.
Mais uma vez, ecoa Azagaia, quando este afirma: “… dono da língua, dono da obra, dono das acções de Banco/ Dono da arrogância, mas deixa explicar um bocado/ É que desde a minha infância que sou sempre bem tratado…” (Azagaia – Cães de Raça). A intertextualidade reforça a tradição da crítica social no rap moçambicano, que se posiciona como espaço de resistência e de denúncia.
Inclusão dos albinos e pluralidade de vozes
Um dos pontos mais ousados da faixa é a inclusão da experiência dos albinos, frequentemente vítimas de tráfico humano pela pigmentação da sua pele. Essa abordagem amplia o debate racial para um quadro de vulnerabilidade específico do contexto moçambicano. O título da música, “A Minha Pele”, funciona como chave interpretativa, sendo a pele, aqui, entendida como espaço de identidade, dor e resistência.
Nesse sentido, o sujeito poético assume múltiplas vozes — negro, branco e albino — numa estrutura polifónica. Esse recurso literário não apenas multiplica perspectivas, como desafia fronteiras rígidas de identidade. Quando o artista afirma: “Eu sou preto, sim, mas também sinto o que vocês sentem/ Minha cor não constitui a diferença entre a gente”, reafirma a busca de uma unidade humana contra a lógica da segregação.
Questões estilísticas e linguísticas
Embora a mensagem seja clara e contundente, algumas construções poderiam ser estilisticamente mais apuradas. Por exemplo, na estrofe do albino: “Sinto-me diferente nos olhos de muita gente” poderia ser reescrito como “aos olhos de muita gente”, para maior precisão. Apesar disso, a oralidade típica do rap justifica certas opções e aproxima a obra do público-alvo.
Do ponto de vista literário, a alternância de vozes confere riqueza estilística, permitindo que metáforas, paralelismos e imagens de denúncia se entrelacem num discurso de intervenção.
Considerações finais
“A Minha Pele” é uma obra de grande pertinência no contexto moçambicano actual. Aborda simultaneamente a herança da escravidão, a persistência do racismo, a arrogância colonial e a vulnerabilidade dos albinos, compondo um mosaico de exclusões e resistências. Para além de promover a reflexão sobre igualdade racial, a música inscreve-se numa tradição artística que questiona as estruturas de poder e propõe um olhar crítico sobre as nossas próprias sociedades.
Assim, Caligrafia Poderosa não apenas denuncia, mas abre espaço para a empatia, colocando-se no lugar do “outro” e, com isso, convidando o público a repensar preconceitos e a lutar por uma convivência mais justa e inclusiva.
