Somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades
José Saramago
A intolerância é um incidente constante em o mundo que iremos gaguejar de cor, de Pedro Pereira Lopes. Manifestada de formas diferentes, aquela mácula aparece categoricamente no livro mesmo com alguma finalidade: discriminar, condenar ou punir. Nisso, são várias as personagens, sobretudo protagonistas, que são encontradas, como é o caso de sebastião, em “reza as tuas orações todos os dias”. Nesta estória, o narrador apresenta enredo com um quadro emocional muito forte, ao descrever os dramas pelos quais um personagem passa, com impacto acentuado na família. Por via de sebastião, rapaz que se aventura na soruma quando devia concentrar-se na escola, “reza as tuas orações todos os dias” projecta uma animosidade entre as autoridades (polícia popular) e a família do infractor, que em lágrimas, soluços e silêncios à mistura clama por perdão. Todavia, o que poderia terminar com um abraço, um pedido de desculpas, promessas ou mesmo mudança de comportamento acaba numa punição cruel, fria e ideologicamente exagerada. Assim, boas-vindas e fenias, pais de sabastião, esgotam-se no desassossego de não conseguirem aceitar que o filho vá para Niassa numa operação que deveria ser apagada da História.
Portanto, o poder representado pela polícia nesta narrativa é intolerante, pois prima em seguir uma convicção cega em detrimento do tino. Tal decisão, não só desterra um rapaz novo como, anos mais tarde, cria um luto precoce.
Outra estória de Pereira Lopes que também configura um grau elevado no que à intolerância diz respeito é “uma noite na cela”. O protagonista desta narrativa é parafino, e, uma vez mais no livro, a polícia aparece como vilã da cena, mas, no caso, movida por um interesse imbecil: moedas para comprar cigarros. Por não pagar no momento em que é encontrado a circular à noite, sem bilhete de identidade, parafino é obrigado a pernoitar na cela. Podendo ser mais compreensíveis diante da explicação que parafino dá, as autoridades optam por outra via, ao verem frustradas as tentativas de extorquir o rapazola.
Em “o cobrador”, outra estória do livro, o fenómeno intolerância repete-se. Consciente disso, o protagonista da trama bufa num monólogo: “sou o cobrador deste machimbombo, tenho autoridade, sirvo à sociedade, sou, afinal, relevante. útil como nunca fui, mas os malditos suspeitam, não crêem. não porque não o querem, não o podem, não lhes tolera a consciência” (p. 46). E, no texto “a greve”, mais uma vez a polícia não consente, em nenhum momento, mesmo confrontada com uma razão óbvia, às reivindicações dos grevistas, o que faz com que na estória instaure-se um caus social entre as personagens, que leva à morte uma delas, eunito. Há ainda o exemplo de jesuina – em “a invenção do cemitério” –, quem morre de desgosto pela incapacidade de aceitar que não pode gerar filhos. Mesmo com um marido bom, quinzedias, jesuina é intolerante consigo mesma e, assim, parte para longa viagem.
Em todos estes casos – neste livro cujo estilo de escrita bem nos lembra uma Lispector, Saramago e, sobretudo, Lobo Antunes – a intolerância interfere negativamente na vida das personagens, abalando não apenas a vida delas, mas também dos entes queridos. Em geral, estas cinco estórias visualizam o que pode e acontece quando numa sociedade como a nossa as pessoas apenas sentenciam como se os seus telhados não fossem de vidro.
Título: o mundo que iremos gaguejar de cor
Autor: Pedro Pereira Lopes
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 14