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A Intertextualidade entre “Barca Oblonga” de Otildo Justino Guido e Fernando Absalão Chaúque e “Osso Côncavo” de Luís Carlos Patraquim

Por Deusa d’Africa

 

O livro “Barca oblonga”, de Otildo Justino Guido e Fernando Absalão Chaúque, foi seleccionado na primeira chamada literária da Editorial Fundza. Os dois poetas, grandes apreciadores de Luís Carlos Patraquim, decidiram homenageá-lo, após a leitura do poema “Osso Côncavo”, do livro “Osso Côncavo e Outros Poemas”.

Analiso o livro em três prismas:

  1. Significação do título do livro;
  2. A leitura tradicional e a leitura hodierna; e,
  3. O Diálogo entre “Barca Oblonga” e “Osso Côncavo”.

 

  1. Significação do título do livro

Barca é um termo que pode se referir a uma grande variedade de embarcações. Etimologicamente “Barca” é um termo originário da língua egípcia, através do grego bâris, do termo latino baris, que gerou o diminutivo barica, que gerou o termo do latim vulgar barca. De acordo com o dicionário de língua portuguesa, a palavra Oblonga é adjectivo e refere-se à característica do que é mais largo ou mais comprido. Para dizer que “barca oblonga” significa  uma larga embarcação.

A expressão “Barca Oblonga” foi transcrita do poema “Osso Côncavo”, especificamente no segundo verso da segunda estrofe do livro de Patraquim.

 

  1. A leitura tradicional e a leitura hodierna

Segundo George Steiner (2020, pág.26), “está longe de ser evidente que o uso de telas tornará facilmente obsoleta a leitura tradicional. Com o tempo o impacto será mais forte. Existem estudos que mostram que as crianças imersas na televisão e na internet relutam a ler da maneira tradicional, admitindo que sejam capazes de fazê-lo. No momento em que as artes da memória, a ginástica da concentração, os espaços de silêncio disponíveis se deterioram, estima-se que 80% dos adolescentes americanos não conseguem ler a não ser escutando música, o lugar da leitura na civilização ocidental é destinado a mudar. É possível que o tipo de leitura “clássica” vai se tornar uma paixão de certa forma especializada, ensinada e praticada nos “clubes de leitura”, que voltará a ser aquilo que foi para Aqiva e seus discípulos após a destruição do Templo, ou nas escolas e nos refeitórios monásticos na Idade Média. Uma forma de leitura que culmina, exactamente, nesse exercício de agradecimento, nessa música do espírito, no facto de aprender de cor (…)”.

Na actualidade moçambicana, vemos que os adolescentes tendem a apartar-se da leitura tradicional, optando por uma leitura hodierna obrigatória, a leitura de manuais escolares, e hermeticamente feita em momentos de testes ou exames quando se avizinham, o que faz-nos crer que mais tarde ou mais cedo uma leitura mais desapertada poderá ser feita  por imperativo circunstancial da vida.  E porque uma leitura tradicional é sempre apaixonada e culmina com o agradecimento, assim desenvolveu-se o “Barca Oblonga”, onde dois poetas colocam o exercício da escrita ao encanto de outra escrita previamente lida, a do Patraquim; pois, a paixão demonstrada neste livro resulta da leitura intimista havida entre o leitor-escritor e o escritor-leitor. Não há muros que separem o território dum e outro, apenas distinguimo-los quando vemos o resultado de cada exercício, se se trata de uma leitura ou de uma escrita, embora haja a interdependência entre ambos que levam-nos ao mesmo porto, vemos isso da ginástica de quem leu o ‘’Osso Côncavo e outros poemas” terminando em “Barca Oblonga”.

 

  1. O Diálogo entre “Barca Oblonga” e “Osso Côncavo”

O diálogo entre duas ou mais obras utilizando um texto como referência designa-se intertextualidade. Um autor utiliza um recurso intertextual quando ele traz elementos de outras obras para dentro da sua, estabelecendo uma relação entre elas, este exercício pode ocorrer na música, pintura, cinema e outras expressões culturais.

Os autores usam a paráfrase para transcrever a ideia central do texto usado como recurso intertextual. Aqui, deparamo-nos com o diálogo entre “Barca oblonga” e o “O osso côncavo e outros poemas”, onde o recurso intertextual é o poema de Patraquim que dá origem ao livro de Otildo e Fernando, e consequentemente é recurso intertextual específico o sexto verso da terceira estrofe do poema de Patraquim intitulado “Osso Côncavo”, do qual resultam as duas partes que compõem o livro: nomeadamente: “a curva suspensa” composta por 29 poemas e “a sombra eléctrica” composta por 23 poemas.

A presença de marcas patraquianas no texto faz com que a leitura ao livro seja uma revisitação ao texto de Patraquim, vemos isto logo a priori quando dizem: “Longilínea extinção da luz’’ na pag.8, enquanto Patraquim diz “longilínea dilatação do tempo” na pág 86. Enquanto para Patraquim o tempo é prolongado e esguio para Otildo e Fernando a luz se apaga vagamente, para dizer que em ambos só pode ser longo o dia da estação quando vemos a luz que define o dia ou noite onde se faz a barca oblonga entre rios citados por Patraquim. Por outro lado encontramos os dois poetas que definem a ponte como agulha do vento subentendendo o sujeito que é o rio que suporta a aludida ponte.

Se em Patraquim deparamo-nos com versos como “o espírito impetuoso, uma raiz movida pelos ventos num músculo com travejado adentro” um verso do poema “osso côncavo”, e em Otildo e Fernando encontramos um “bisturi cortando a chuva que dorme no relevo da carne” na pag. 9, pode se compreender que neste último abre-se o músculo referido por Patraquim irrompendo a dor.

No verso que se segue que diz o seguinte: “um talho vivo/ nas formulações/ orgânicas da língua’’, vemos um bisturi que adentra-se à carne e rasga-a com todos os procedimentos que se desfaz a língua. Aqui encontro um recurso intertextual com “Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora” no poema ‘’novas formulações ’’ onde cita ‘’a casa de trapos entre os lábios.’’ Para dizer que há corte e recorte da língua deixando-a em trapos ou mesmo escaqueirada.

Em Patraquim, no poema “osso côncavo” encontra-se o seguinte: “vazio (…) oscilante eco sem memória/ de ventre  que nem a águia se atreve ao voo/ e a serpente se desenrola até a evaginação de si” e para os dois poetas “perco-me devagar/ como uma palmeira/ abrindo-se no ofício das águias”,  se Patraquim traz-nos uma águia que não luta contra a serpente no solo representado pelo ventre citado o que permite que a serpente se evada e por outro lado vemos um personagem perdido como a serpente que ao céu perde a astúcia e força diante da águia que a enrola para combatê-la no seu lugar de conforto que é o espaço, e a palmeira voando como as águias.

Na página 12 dizem os poetas: “animal nuvem/ osso:/ engenharia da palavra/que os deuses/ usam para reescrever o céu’’. Encontramos o osso como o epicentro para criação do céu como um elemento do paraíso, para dizer que os poetas encontram em Patraquim, que usa a palavra osso desde o título do livro até aos poemas como a finalidade de tudo o que é dito, ou como a fórmula da equação com que se tece o livro escrito por este deus tal como o designam os poetas que são seus admiradores. Se olhássemos para a palavra mais presente em quase todos os poemas, este livro chamar-se-ia “Osso Côncavo”. Contudo, não faria sentido pelo facto de já existir o livro com esse título, o de Patraquim.

Neste exercício feito pelos dois poetas, encontramos o dadaísmo em que um começa o poema e outro dá continuidade sem se distinguir de quem é cada verso escrito. Na expectativa de lançar os meus ósculos ao chão da minha palhota, como o fazem os curandeiros, nossos engenheiros espirituais, encontrei na página 15 alguns versos escritos pelo poeta Otildo “gengiva da alga/ abocanhando peixes/ no alcatrão do limpopo” e na página 18 “entram/ pelo chão do poema/ e quebram a língua do mar: thokoza, bava!” versos escritos por Fernando Absalão. Os ósculos não se enganam.

Patraquim diz em “osso côncavo” no sexto verso da quinta estrofe “e a lava que se derrama dos pulmões furiosos’’ referindo-se as chamas da fusão de um vulcão oriundo do ar poluído representado pelos pulmões furiosos. Em Otildo e Fernando na página 32 “a metafísica/ desponta do pulmão da água/ percorre a vulva do alcatrão/ dobra-se até ser ave/ ao ritmo do nyau.” Vemos quem tomba quando se verga pela finitude com que as coisas percorrem o límpido e o obscuro, na mesma medida.

Já na segunda parte “a sombra elétrica” encontramos “pluma eléctrica/ suspensa” na página 38, “sombra líquida / eléctrica/ ancorada/ na atmosfera da dor” na página 39. Encontramos na página 40 “nas ancas do feijão e do milho”, todos estes versos surgem como resultado do recurso textual que é o poema “osso côncavo” onde encontramos anca de água negra, das cavernas uma goela roendo de se cortar a carne da língua, e uma sombra eléctrica com força e desfalecida.

Para Sartre (2014), a subjetividade é interiorização e retotalização, isto é, no fundo, para retomar termos mais vagos e, ao mesmo tempo, mais conhecidos: vive-se; a subjetividade é viver o seu ser, vive-se o que se é, e o que se é em uma sociedade, pois não conhecemos outro estado do homem; Em “Barca Oblonga”, deparamo-nos com uma poesia subjectiva de elevado signo linguístico, uma subjectividade que o poeta vive em diversificadas formas desde a pedra, na sua nudez, deitado ou mesmo sonhando tal como apresenta o excerto da página 52 “pedras que sonham/ na órbita da sombra”, e “uma cidade que é barco” citada na página 53, encontramos nas pedras descritas, os homens à volta de seu próprio reflexo e as cidades feitas por homens que são canais que levam-nos de pequenas a grandes embarcações na longilínea dilatação do tempo descrito por Patraquim.

Votos de boa leitura a todos e bem-haja esta fusão entre os dois poetas que se apresentam em três.

Referências Bibliográficas:

PATRAQUIM, Luís Carlos. “Matéria Concentrada: antologia poética”. Ndjira. 2010.

STEINER, George. “Aqueles que Queimam Livros”. Editora Âyiné. Veneza. 2020.

SARTRE, Jean –Paul.  “O que é a subjectividade?” Editora Nova Fronteira Participações S.A. Rio de Janeiro. 2014.

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