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A importância da crítica literária na apresentação da obra Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura, organizada por Almiro Lobo e Teresa Manjate

Por Conceição Siopa

 

A obra Literatura Moçambicana: Trajectórias de Leitura, lançada na passada quinta feira (2 de Junho) no Camões, Centro Cultural Português e editada pela Alcance editores, reúne um conjunto de textos, organizados em livro por Almiro Lobo e Teresa Manjate. A obra é uma colectânea de cerca de vinte e dois textos de crítica literária, de natureza diversa, produzidos por Gilberto Matusse, Lucílio Manjate, Aurélio Cuna, Osvaldo das Neves, Albino Macuácua, José Camilo Manusse, Elídio Nhamona, Lurdes Rodrigues da Silva, para além dos organizadores Almiro Lobo e Teresa Manjate, que também são autores. Os organizadores desta colectânea são conhecidos académicos e professores de literatura da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, mas também críticos literários, autores de diversos textos publicados e membros de diversos júris de prémios literários.

A partir do título desta obra percebe-se que os seus organizadores, certamente por modéstia, assumem que o produto das leituras desenvolvidas, expressas em textos escritos, são encarados como trajectórias, deixando implícita a ideia de que poderá haver outras trajectórias. Ou seja, assume-se que aquelas leituras são umas entre outras possíveis que, nas palavras dos organizadores, são “percursos que a agenda do leitor engendrou em cada momento” (Lobo & Manjate, p.7). Ora, nós leitores comuns, não nos deixamos enganar. Estes leitores, e autores dos textos reunidos nesta colectânea, não são leitores, nem autores comuns. São leitores especializados, treinados na leitura crítica da qual fazem o seu ofício, pois todos os autores são docentes do Departamento de Linguística e Literatura da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM e, na sua maioria, docentes de Literatura. Não sendo leituras “doutrinárias, nem paradigmáticas” (Lobo & Manjate, p.7), estes leitores trazem para o acto de ler todo o seu repertório (a sua biblioteca, segundo Humberto Eco), toda a sua memória de leitores, de outras leituras, todo o seu saber, toda a sua experiência de pensadores sobre a literatura em geral, e sobre a literatura moçambicana em particular, conferindo aos textos desta colectânea o estatuto de um manifesto de crítica literária.

Das leituras realizadas por estes autores resultaram um conjunto de vinte e dois textos de natureza diversa, sobre literatura moçambicana: ensaios, comunicações, trabalhos académicos, reflexões, prefácios e recensões críticas, estas últimas sob a forma de textos de apresentação de obras. Esta proliferação de textos em género e número atesta o envolvimento dos autores destes estudos em projectos de leitura crítica dos textos dos escritores moçambicanos, estudando as suas obras, desenvolvendo estudos comparados, inventariando temas abordados e caracterizando estilos de escrita. Dos textos aqui reunidos emergem escritores e temas importantes para a história e caracterização da literatura moçambicana. São muitos os escritores sobre os quais se escreve nesta colectânea: Orlando Mendes, José Craveirinha, Lília Momplé, Lindo Lhongo, Aldino Muianga, António Pinto de Abreu, Mia Couto, Luís Carlos Patraquim, Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, Sangare Okapi, Lucílio Manjate, Nelson Lineu, Lica Sebastião e Virgilia Ferrão. E outros tantos temas presentes nas obras destes autores são cartografados  ou sobre os quais reflectem, como o cânone literário moçambicano, a história, a memória, o quotidiano, a mulher, a cidadania, o abstracto, as vozes, as visões do mundo, entre outros.

O lançamento desta colectânea, pela sua natureza, impõe uma reflexão sobre a importância desta obra e da crítica literária que esta encerra. Para tal, convoca-se para esta reflexão três autores de nacionalidades distintas. O primeiro, o sociólogo polaco Zygmunt Bauman (1925-2017), caracteriza, nos seus estudos, a nossa época como uma época em que se confirma a passagem de uma sociedade sólida, repleta de certezas, de convicções e de relações solidificadas, para uma sociedade líquida instável, fragmentada e incoerente, em que proliferam múltiplos conceitos, diversos, alguns até contraditórios, e cuja compreensão se escapa, muitas vezes, por entre os dedos como a água. No entanto, para o bem e para o mal, esta época é também mais dinâmica que a anterior e a literatura, como a arte em geral, é talvez a manifestação humana que melhor fixa e veicula esta fragilidade, esta fluidez e este dinamismo da nossa sociedade e das relações humanas que a caracterizam. No entanto, e apesar desta caracterização recente de Bauman, já o texto literário, há largas centenas de anos, na sua arte de registar o que nos vai na alma, vem captando a fluidez, a incerteza e o efémero que caracterizam o ser humano.

Recorro agora ao segundo autor, Camões (1524/1580), que já no século XVI se referia à mudança no seu célebre soneto: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Entre as várias mudanças que o poeta enumera há uma que poderá espantar os leitores do século XXI e com a qual o poeta termina o poema: “E, afora este mudar-se cada dia/ Outra mudança faz de mor espanto/ que não se muda já como soía”. Ou seja, cristalizam-se neste poema sensações, pensamentos de um poeta sobre a sua época, o seu tempo, em que este se apercebia não só da mudança em si, mas também da forma e ritmo com que a própria mudança ocorria. Para além desta reflexão sobre a mudança, também a memória e o seu papel fundamental na vida de todos nós, é abordado neste soneto de Camões. Escreve o poeta: “Continuamente vemos novidades,/ Diferentes em tudo da esperança;/ Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem, se algum houve, as saudades. Ora, se pensarmos bem, quer as mágoas, quer as saudades alojam-se não só na memória individual, mas também na memória colectiva de cada povo. E a propósito da memória das mágoas e da sua importância na memória colectiva, Craveirinha (1922-2003), o terceiro autor que se convoca nesta reflexão, refere num dos seus poemas: “ […] Eu vivo e revivo no chão raso deste simples poema as belas-artes tropicais da formiga formigueira/ eu provisoriamente camuflando os revólveres/ na gramática dos seus próprios donos/ porque os poetas aqui não podem/ ser da raça dos homens mas sim/ inofensivos invertebrados/ oriundos de Moçambique. […]”[1]

No entanto, como todos sabemos, nem sempre a escrita literária é compreendida no seu papel de fixador e na sua fundamental importância de nos fazer reflectir. Por isso, não terá sido por acaso que surge, nos anos 60 (1967) do século passado, o movimento da estética da recepção, responsável por reconhecer o papel determinante do leitor, não só como um elemento fundamental do acto de comunicação que é a obra literária, mas também como um instrumento para a actualização permanente do seu sentido. Sabe-se hoje, e em grande medida o devemos a esse movimento, que o leitor não lê de qualquer maneira, lê de acordo com os elementos presentes no texto, articulando-os com conhecimentos anteriores e com a sua experiência de leitura, fazendo inferências com a realidade que conhece. Ou seja, o acto de ler é na verdade um acto de reconstrução do sentido do texto, transformando o que é efémero (nas palavras de Bauman) em perdurável através dos tempos, como vimos em Camões, e novamente sentido, como se demonstra pelo exemplo dos versos de Craveirinha. Ou seja, não fosse a escrita literária e o olhar especializado da crítica literária, “que impulsiona a competência dos leitores” (Lobo & Manjate, p.7) possivelmente não teríamos acesso aos pensamentos, sensações e sentimentos expressos por Camões e Craveirinha sobre si próprios e sobre as suas épocas.

Neste momento, poderá o leitor destas linhas perguntar o que tem, todo este arrazoado, a ver com o lançamento de um livro sobre a literatura moçambicana? Pelo que se disse anteriormente, parece haver uma relação digna de referência. Ou seja, como puderam perceber, foi da leitura dos textos que compõem esta colectânea que surgiu, quer o pensamento de Bauman, quer o poema de Camões e de Craveirinha porque, de uma forma geral, todos os autores destes textos fazem, de forma implícita ou explícita, referência à literatura como forma de arte que testemunha o tempo, a história, a mudança e é repositório da memória individual e colectiva moçambicana. Neste sentido, a crítica literária como leitura sistemática e especializada, tem um valor fundamental para a literatura moçambicana e para a memória individual e colectiva dos moçambicanos. E esta coletânea que encerra textos diversos sobre obras literárias moçambicanas tem, por tudo o que foi dito, um valor incalculável e o seu único defeito é a sua publicação ser já tardia.

A terminar, partilham-se algumas palavras dos organizadores destas Trajectórias, aqui citados como autores. São palavras retiradas do seu contexto, que ganham vida própria ao concretizarem, em si, as linhas de apreciação adoptadas nesta apresentação:

 

É por isso também que leio com prazer renovado […] Porque me devolve, por instantes, a confortante sensação de que, através da literatura e com a literatura, posso usufruir dos prazeres restantes da vida e retornar à condição de cidadão com esperança na restauração dos valores positivos com que se sustenta uma sociedade.” (Almiro Lobo, p.27)

 

Um problema ressalta deste breve olhar, a necessidade de restaurar o papel da crítica literária que se pretende mais robustecida, com espaços igualmente fortes que possam enobrecer o trabalho de muitos actores que podem, em virtude deste marasmo, cair no esquecimento…” (Teresa Manjate, p.91)

 

 

[1] Craveirinha, José (1980), “Olho por olho dente por dente”, Revista Tempo, 505 (junho): 56-57.

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