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A greve de Celso Cossa*

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma.

in A insustentável leveza do ser, Milan Kundera.

Há uns anos, publiquei um artigo no qual defendi que O menino que odiava números, de Celso Cossa, foi o melhor livro publicado em Moçambique, em 2019. Lembro-me que nesse mesmo texto manifestei o desejo de continuar a ser amigo do Celso, pois, no ano anterior, um artigo similar quase me custou amizade com Álvaro Taruma. Cortando etapas, o poeta não reagiu muito bem ao artigo em que indiquei o seu Matéria para um grito como a principal proposta para vencer o Prémio BCI de Literatura. Com alguma razão, pois teve de suportar sozinho a acusação (de outros autores) de que eu fazia uma propaganda gratuita a seu favor. Como se eu fosse um lobista…

Talvez por ser ficcionista, Celso Cossa não ficou nada constrangido com o meu artigo. Pelo contrário, sem demora, enviou-me um SMS a dizer-me que tinha gostado imenso do texto e a garantir-me que a nossa amizade estava completamente salva. Aliás, algumas semanas mais tarde, o nosso escritor convidou-me a apresentar O menino que odiava números, na Escola Portuguesa. Sem pormenores (Celso, agora ficas a saber a verdade), inventei uma viagem qualquer e assim evitei apresentar aos leitores uma história muito bem elaborada.

Só uma nota de rodapé: nem foi por maldade que menti ao Celso, coitado. Apenas julguei que, sobre o seu infanto-juvenil, que, na altura, me valeu umas conversas muito animadas com vários escritores, estava tudo dito. Inclusivamente, no dia seguinte à publicação do meu artigo, O menino que odiava números foi considerado Prémio BCI de Literatura, isto é, melhor livro do ano publicado no país em 2019. E eu agora pergunto-te, ó Celso: já imaginaste quantos porcento poderias ter-me pago, se eu fosse um nhoguista?

Como na crítica não há nhongas, e com a amizade manifestamente fortalecida, cinco anos depois, Celso Cossa volta a convidar-me para apresentar um livro. No caso, este A greve das palavras. Desta vez, não tive argumentos contrários, até porque o nosso escritor teve o cuidado de ir lá a casa oferecer-me um exemplar, logo num domingo de manhã, em que tanto se sacrificou ao trocar um copo de cerveja por outro de água que o ofereci.

Não podendo resistir ao privilégio de apresentar o novo livro do Celso, aceitei satisfeito o convite, convicto de que tinha em mãos um excelente livro juvenil. E não me enganei. A greve das palavras é um exercício literário interessantíssimo, quer do ponto de vista temático, quer em termos de abordagem estética. Quando o li, a primeira questão que me ocorreu captar é “A infância como ponto de partida” para a escrita. Quer dizer, o nosso escritor, ao fazer jus a esse substantivo, realiza uma viagem anacrónica para a sua própria meninice, da qual, como fazem os grandes escritores deste e do outro século, recupera um conjunto de ocorrências prolíferas para a ficção. Há-de ser por isso que as histórias deste livro encerram perspectivas sugestivas na definição do espaço, enquanto categoria da narrativa onde as personagens se movem e sofrem acções suficientemente robustas para moldar comportamentos humanos.

O espaço de A greve das palavras, tendencialmente agreste, no entanto, longe daquele registo paisagístico (feito de colinas, árvores e aves), recorrente em imensos infanto-juvenis, é coerente e complementa-se com o tempo. Mas não há aqui um tempo concreto. Nos seus contos, Celso Celestino Cossa explora um tempo indeterminado, porém possível, o que faz com que as histórias possam ser referentes a um instante do passado e até do futuro. Nesse aspecto, este livro juvenil é uma espécie de pêndulo, sem fronteiras fixas entre o possível e o imaginário. Contribui, para esse cenário, a destreza do escritor na manipulação dos estatutos do narrador. Em alguns casos, participando no enredo como protagonistas e, noutros, como enunciadores do discurso apenas. Seja qual for a situação, vale a pena observar o investimento que o nosso autor faz, mais do que no final, no princípio da narração. Vejamos, por exemplo, o primeiro conto, designado “O livro desaparecido”:

 

O detective contratado para encontrar o livro desaparecido passeou os olhos pelas prateleiras da biblioteca, retirou os livros que lhe pareciam suspeitos e, com a minúcia de quem procura uma agulha num palheiro, inspeccionou as lombadas, as orelhas, as capas e as contracapas, antes de folhear as páginas e constatar que o objecto de leitura ali não se encontrava (p. 9).

 

Aparentemente simples, o excerto revela uma capacidade descritiva acrescida. Num só período, repare-se, inicial, o narrador consegue apresentar uma personagem (detective), uma missão (encontrar o livro desaparecido), um espaço (biblioteca), uma acção (retirou os livros que lhe pareciam suspeitos) e, enfim, introduzir uma bela história de uma forma sublime. Num só período, o nosso escritor introduz a história de modo a gerar encanto e expectativa, explorando até alguns recursos estilísticos no exercício da sua linguagem.

Outro aspecto que me chamou atenção, durante a leitura deste livro, é o que considero “A desconstrução de um paradigma” no conto “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Primeiro, a narrativa de Celso Celestino Cossa fez-me regressar à época em que dei aulas numa escola primária em Tete. Lembro-me que em 2008 e 2009 tive alunas que, mal passavam do sétimo para o oitavo ano de escolaridade, tinham de cancelar os estudos porque, de acordo com a vontade dos pais, tinham de se casar mal vissem a menarca.

Em geral, a situação das minhas alunas é ficcionada em “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Esta é um conto sobre uma menina inteligente, que, por isso, ganha uma bolsa de estudo, surpreendendo a comunidade escolar e as autoridades locais por ser a primeira do sexo feminino a atingir tal realização. Entretanto, quando o pai toma conhecimento do êxito da filha, imediatamente vocifera:

 

Não quero ouvir nada sobre este assunto advertiu meu pai. A nossa filha já completou a 7ª Classe. Isso é mais do que suficiente para uma mulher! Agora, ela deve, mais é, ficar a cuidar da casa e dos seus irmãozinhos, até que eu lhe arranje um marido (p. 20).  

 

Triste e inconformada com a decisão do pai, Dandiwa confessa, quase num monólogo silencioso:

 

Não cabia na minha cabeça que a mulher somente nasce para cuidar do lar, do marido e dos filhos (p. 21).  

 

E mais adiante:

 

Para provar que em certas sociedades é mais fácil desenterrar as raízes profundas de um embondeiro a deixar que as mulheres corram atrás dos seus próprios sonhos, alguns dias depois o meu pai reuniu na nossa casa todos membros da família e anunciou que já me tinha arranjado um marido. Aquele que eu tinha para marido era o homem mais próspero da nossa aldeia. Para além de uma população inestimável de gado, extensas áreas de cultivo e vários fontenários, a maioria da população da nossa aldeia trabalhava para ele, o que fazia dele o melhor partido para qualquer pai casar uma filha” (p. 21).

 

Com a protagonista desta história, inevitavelmente, também sofremos, quando lemos. E, no enredo, o sofrimento é bom, porque nos purifica e nos situa na nossa realidade e na nossa condição de moçambicanos. Muitas vezes, quem nunca viveu no interior no país, corre o risco de julgar que certos hábitos e costumes estão ultrapassados. Ficciona-los, com efeito, contribui para a arte literária afirmar-se como elemento essencial e imprescindível na construção de uma cidadania condizente com a nossa contemporaneidade. Afinal, o futuro das nossas filhas, sobrinhas ou irmãzinhas importa na mesma proporção que o futuro dos nossos filhos, sobrinhos e irmãozinhos.

Além da forte possibilidade de nos ligar ao nosso contexto, “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos” apresenta uma intrínseca intertextualidade com o conto “A mulher sobressalente”, de Dany Wambire. Neste último caso, há uma menina que, impedida de estudar, foge de casa, da sua aldeia, e vai trabalhar para cidade como empregada doméstica. Pressionada pelo pai da pequena, entretanto, a mãe vai convencê-la a regressar a casa, de modo a salvar o casamento da irmã mais velha, que, segundo uma percepção machista, só gera meninas, quando o marido almeja um herdeiro.

À semelhança de “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos”, “A mulher sobressalente” apresenta um pai interesseiro, com uma visão do mundo redutora, injustificável na opressão da rapariga. A diferença encontra-se, sobretudo, no fim das histórias. Enquanto em Cossa a justiça impera no lançamento do destino da protagonista, em Wambire essa justiça é adiada irreversivelmente. Todavia, em todos os casos, a proximidade entre as duas histórias é tão particular que, a certa altura, questionei-me: Será que o Celso, pretendendo publicar um livro pela Editorial Fundza, pôs-se a escrever um conto que dialogasse com o do seu editor? Bem, o Celso é adulto e terá a oportunidade de responder a esta pergunta, se julgar conveniente.

Com ou sem resposta, levanto mais um aspecto que me interessou durante a leitura do livro, designadamente, “A perspectiva do outro”. Muitas vezes, nós julgamos e tomamos decisões  apenas em função do nosso ponto de vista, sem nos preocuparmos em ouvir ou compreender a outra parte num eventual conflito. Nesses casos, geralmente, falhamos e perdemos claras oportunidades de construir algo comum e duradouro.

Ora, o grande exemplo da relevância de nos colocarmos na “perspectiva do outro” é o conto “Zumbido de pernilongo”. Esta é uma história engraçada e dramática. A certa altura, um ser humano fere gravemente um mosquito. Já no leito da morte, o insecto conta à filha mais velha o que lhe aconteceu e esta jura vingança mal perde a mãe mosquito. A história é tão bem contada na perspectiva das vítimas que, ao longo da leitura, questionei-me várias vezes sobre quão injustos temos sido por nos julgarmos o centro do mundo, se preferirem, os donos da razão. Celso Cossa, na verdade, confronta os nossos juízos de valor numa narrativa aparentemente banal, mas carregada de uma intensidade e originalidade.

“Zumbido de pernilongo” é uma história sobre a empatia ao invés de ressentimento. Por isso mesmo, quando o mosquito localiza o homem culpado pela morte da mãe, no momento em que ele brincava com o seu filho, pergunta-se se seria justo deixar o menino órfão de pai na sequência da sua vingança. Quer dizer, antes de qualquer sentença, o insecto coloca-se no lugar do outro (ainda que esse outro seja um ser vivo de outra espécie), imagina e capta as possíveis dores do menino. Só depois disso o insecto vingador toma a decisão que torna o conto ainda mais sugestivo em abordagem. Como é óbvio, não vou contar qual foi essa decisão porque sabe melhor quando lemos em silêncio.

O grande problema de “Zumbido de pernilongo”, entretanto, é que de há algum tempo a esta parte eu já não consigo matar um mosquito. Sempre que um insecto voador passa por mim, penso que pode ser um zumbido de pernilongo. E reparem. Eu vivo em Infulene, na Matola, e lá o que temos demais são mosquitos. Então, não me vai admirar nada se daqui a algum tempo, ó Celso, seres acusado de contribuir para o aumento de casos de malária. Quem manda escrever tão bem uma história que nos faz reflectir sobre a importância de todo tipo de vida?

É bom que se lhe diga. Celso Cossa tanto sabe escrever sobre a abstracção do afecto quanto sobre o “Contexto crítico”. Motivado ou não pela nossa actualidade política e social, o escritor traz-nos “A greve das palavras”, conto que empresta o título ao livro. Apesar de o autor não tocar categoricamente em aspectos contextuais, na leitura, é difícil não relacionarmos as greves que colocam em xeque as instituições do nosso país. Sem ser explícito, mas sugerindo, o conto consegue atravessar um tempo e uma realidade, claro está, dando-nos a possibilidade de escolher a melhor interpretação para cada evento.

A mim, em particular, “A greve das palavras” fez-me lembrar da escrita do meu amigo Mélio Tinga, no que se refere ao investimento discursivo dos narradores e das personagens em detrimento do enredo. Esse último de seis contos é, principalmente, um exercício sobre a linguagem literária, sobre a susceptibilidade do nosso escritor criar sempre, tendo os mais novos como a razão e finalidade da escrita.

A propósito dos mais novos, em Levantando do chão (salvo o erro), Saramago escreve uma frase como a seguinte: “As crianças são a melhor coisa do mundo. Sobretudo quando precisamos de uma rima para danças”. Eu não sei se o Celso leu aquele romance do único autor de língua portuguesa a vencer o Nobel. Seja como for, abusado como é, contraria o escritor português quando nos sugere que a criança não é uma rima para coisa nenhuma, pelo contrário, é o poema inteiro. E, como nos sugere o narrador do conto “O rato e o dicionário”, as histórias deste livro tanto valem por si como também valem pelo perfil de quem as conta. Neste universo imaginário, com efeito, “conhecer as palavras é sinónimo de resolver quase todos os problemas” (p. 57).

Para terminar, que esta apresentação já vai longa, Celso, deixo-te mais uma pergunta. Sinceramente, espero que respondas: já reparaste que te estás a tornar uma das grandes referências do infanto-juvenil em Moçambique?

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro A greve das palavras, de Celso Cossa, no Camões Centro Cultural Português em Maputo, no dia 25 de Julho de 2024.

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