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“A finalidade do Xiquitsi é preparar o Homem para vida”

O Xiquitsi tem promovido temporadas de música clássica em Maputo já lá vão anos. Ao fazê-lo, o Projecto tem colocado Moçambique no circuito internacional. No entanto, de acordo com Kika Materula, Directora Artística, o maior objectivo do Xiquitsi é preparar o Homem, no caso os alunos, para vida, o que implica assegurar certas condições de trabalho.

Comecemos pelo propósito. Xiquitsi quis homenagear a cidade de Maputo na primeira série de concertos deste ano. Objectivo satisfeito?
Objectivo mais que satisfeito. Naturalmente, não poderíamos estar alheios a estas celebrações do Município de Maputo, nosso parceiro há muitos anos. Cidade Maputo é que nos acolhe e que nos viu nascer. Nada bom como a celebrar com música feita aqui para os moçambicanos.

Foi a pensar na homenagem que incluíram na série “Cidade menina”, de Mia Couto e Hortêncio Langa. Como foi experiência?  
Esta foi, a cereja em cima do bolo. Fizemos muitos trabalhos e apresentamos várias músicas que têm a ver com a nossa cidade, mas “Cidade menina” foi, talvez, a obra mais representativa destas celebrações. Conseguimos juntar num palco três nomes da arte moçambicana que muito admiro: Mia Couto, que escreveu este grande poema; Hortêncio Langa, que o musicou, e Xixel Langa, que o cantou. Conseguimos levar ao palco estas três representações da nossa cultura com a Orquestra Xiquitsi. Não poderíamos estar mais orgulhosos.

Como “Cidade menina” chega aos palcos do Xiquitsi?
Mia Couto e a Embaixada do Brasil organizaram a vinda de Maria Bethânia a Maputo, para um recital no Centro Cultural da UEM. Nesse evento, na conversa com Agualusa, lembro-me de ter ouvido Mia dizer, em tom de admiração, o quão longe a música consegue chegar. A partir desse instante, eu disse para mim própria que iria musicar Mia Couto. Passou quase um ano, e lá estive eu a tocar Mia Couto.

O Presidente do CMM, David Simango, considera que a “Temporada de Música Clássica é um dos momentos altos dos acontecimentos artísticos anuais que preenchem o calendário cultural da nossa cidade”. Concorda?
Completamente. Eu assino em baixo, Sr. Presidente, por que a temporada de música clássica é um evento único na nossa cidade, e nós não temos outra igual no país, infelizmente.

Vantagem ou desvantagem?
Por muito que possa parecer contraditório, vejo como uma desvantagem. A cultura é um bem necessário para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Quanto mais eventos culturais e acesso à cultura tivermos, ganhamos todos e passamos a olhar o mundo com outro horizonte. Precisamos de muitos eventos culturais e não apenas ao nível musical.

Nesta edição, Estevão Chissano, aluno do Xiquitsi, celebrou uma missa entre glória e credos. Que ilação se pode retirar disso?
O Estevão fez uma coisa que considero, neste momento, um milagre. Estevão escreveu uma missa ao fim de dois anos e meio de aulas de música. Não é comum e ainda não vi isto acontecer no passado com uma obra com esta dimensão. O Estevão escreveu uma obra com muita complexidade musical e técnica. Tive de a estudar muito para depois interpretá-la. E por estarmos a celebrar a cidade de Maputo, estreamos a missa inteira na abertura da temporada. Ao ter a obra pela primeira vez tive um misto de emoção, espanto e muito orgulho. Este trabalho não só mostra aquilo que estamos a fazer como dá prova de que estamos num bom caminho e com impacto não só a nível nacional mas também a nível internacional.

Actuaram em várias salas, como Átrio do Conselho Municipal e Centro Cultural da UEM. Existe alguma na qual gosta mais de tocar?
O Teatro Avenida é especial, porque somos bem recebidos e porque lá encontramos uma equipa com muitos anos de experiência e com quem já trabalhamos há muito tempo. Se existe uma sala que gosto mais de tocar? São todas diferentes. Cada uma tem o seu pró e cada uma tem o seu contra. Nenhuma delas é perfeita e nenhuma delas me faz pensar que não quero lá voltar a tocar. Qualquer uma delas é uma sala que quero voltar a tocar.

Em termos de alinhamento musical, quiseram veicular alguma mensagem ao público que vos acompanhou ao longo das sessões?
Não só ao público como também aos nossos alunos, porque é importante a valorização do nosso património musical, que se saiba e que se sinta o que se está a tocar. E a mensagem é exactamente essa, de que a música é completamente livre.

Funciona dizer que a finalidade do Xiquitsi é preparar o Homem para vida por via da música?
Eu não diria de melhor forma. É exactamente esse o nosso objectivo. Mais do que formar os melhores músicos do país ou do mundo, nós queremos atingir aquilo que é mais importante: o Homem, a sociedade, o desenvolvimento e o bem-estar dessa sociedade. Acredito, sem qualquer margem para dúvidas, que a música e a cultura têm um papel importantíssimo neste factor.

A série contou com músicos de África, Europa, Ásia e América. Como é reunir e lidar com tantos monstros da música de uma vez só?
Não é fácil, mas também não é nada que não tenha feito antes. São músicos fantásticos e tenho o privilégio de os conhecer a todos. Trabalhar com grandes músicos, que podem colaborar com os nossos alunos, é sempre uma grande satisfação.

Ao trazer ao país tantas referências da música clássica, passa por vocês o objectivo de colocarem Moçambique num circuito mundial, calculo. O que mais deve ser feito?
Sim, mas mais do que isso, o grande foco são os meus alunos. Para mim, tal como aconteceu comigo, é muito importante que eles se formem junto dos melhores. E para isso só trazendo os melhores cá, que eu não consigo leva-los a todos para fora.

E os alunos estão a conseguir colocar-se no nível dos melhores?
Posso-lhe dizer o que aconteceu há pouco. Houve um concurso para um estágio de orquestra em Seul, Coreia do Sul. Para esse concurso houve 205 candidaturas. Desse número apuraram 63. Das 63, para o orgulho meu, duas são moçambicanas alunas do Xiquitsi: a Jéssica e a Cleidy. Eu não sei se consegui responder à sua pergunta.  

O próximo Xiquitsi?
Vem em Agosto. Vai contar com músicos franceses e um quarteto brasileiro que virá com alto patrocínio da embaixada do Brasil.

Mas quem já viu a primeira série pode não ver a que vem em Agosto…
A segunda série vai ser muito diferente da primeira, que teve grande enfoque na música feita pelos instrumentos musicais. Na segunda vamos ter grande enfoque na voz, e vamos voltar a tocar a obra do nosso Estevão Chissano, que não me canso de ouvir.

Por quê ficaríamos expectantes em acompanhar a segunda série?
Nós vamos ouvir Moçambique pela segunda vez ao mais alto nível artístico. E vamos ter algumas surpresas da música moçambicana.

O que numa série do Xiquitsi não deve faltar para que concluam que foi um sucesso?
Música de qualidade e organização. E com organização quero dizer que os meus alunos têm condições dignas para chegarem às aulas, aos ensaios e de retornarem a casa depois dos ensaios ou dos concertos. Nós temos uma preocupação grande a esse nível, e não apenas durante a temporada. Todos os nossos alunos têm um apoio financeiro. Todos os alunos que acabam os ensaios depois das 19h30 devem ir a casa num transporte providenciado por nós. Os nossos alunos têm apoio de alimentação digna, porque temos alunos dos bairros periféricos que não conseguem tempo, depois das aulas curriculares, de ir comer a casa. Essas condições são importantíssimas para que tenhamos êxitos.

Quanto tempo levam as vossas aulas?
Cada aula individual leva 50 minutos. As aulas em conjunto variam de hora e meia e três horas. São aulas muito exigentes a nível intelectual e que exigem muita concentração dos nossos alunos.

Nada que prejudique a escola?
Pelo contrário. Está provado cientificamente que a música desenvolve o cérebro. Quando estamos a ler uma partitura e trabalhamos com música activamos várias partes do cérebro que não são desenvolvidas, por exemplo, com a simples leitura de um livro.

O que significa organizar uma temporada de música clássica durante uma semana?
Muito esforço, trabalho e concentração. Significa estar pelo menos seis meses antes a trabalhar para esse efeito; significa muitos sacrifícios pessoais e um orgulho tão grande por promover um evento internacional nesta cidade.

Onde o Xiquitsi pretende chegar?
O Xiquitsi quer ter impacto nesta sociedade, quer formar aquela que será a primeira orquestra sinfónica moçambicana e quer ver o nome Moçambique não apenas através da bola ou do atletismo, mas também através da música clássica no mundo fora.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro a grande obra de Estevão Chissano, que será tocada a 6 de Agosto; a obra de Samito Matsinhe e exposição de Renata Sadimba, no CCBM.

Perfil
Kika Materula é a Directora Artística do Projecto Xiquitsi. Licenciou na Escola Superior de Música de Lisboa, depois, tirou a pós-graduação em Malmöe, na Suécia. Em 2001, foi uma das vencedoras, em Portugal, do Prémio Jovens Músicos. Ingressou na Orquestra Sinfónica do Porto. Ano passado, foi condecorada com o Grau de Oficial da Ordem de Mérito, em Maputo, pelo Presidente português Marcelo Rebelo de Sousa.

 

 

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