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A família em crise(?) — a nova face da promiscuidade na sociedade moçambicana

A família constitui-se como a primeira e mais importante instituição social. É nela que se transmite o património simbólico, cultural e moral que estrutura a vida colectiva. Tal como sublinhou o sociólogo Émile Durkheim, a família é um facto social total, um espaço em que normas, valores e crenças são incorporados pelos indivíduos, moldando, não apenas as práticas presentes, mas também o destino das futuras gerações.

O lar, enquanto espaço material e simbólico, é mais do que uma residência: é um lugar de pertença, intimidade e protecção. É nele que se ensaiam papéis sociais, se exercita o diálogo e se projectam futuros comuns. A família nuclear — pai, mãe e filhos — consolidou-se, sobretudo na modernidade ocidental, como a forma central de organização da vida privada, ainda que em constante reconfiguração.

Contudo, na contemporaneidade, a família enfrenta desafios inéditos: a individualização (Beck e Beck-Gernsheim), a liquidez dos vínculos (Bauman), a globalização cultural e o avanço das tecnologias de comunicação. Estes factores ampliam as possibilidades de escolha, mas também intensificam as tensões no seio dos casais e das famílias.

A decisão de constituir família exige uma ruptura parcial de laços de dependência — tanto familiares como sociais — para se construir um projecto comum. Sociologicamente, este processo requer negociação contínua, tolerância, renúncia de absolutismos e capacidade de partilha.

Quem entra na vida conjugal apenas para “ter razão” ou para impor certezas absolutas demonstra imaturidade para a vida em casal. O sociólogo Anthony Giddens fala da “relação pura”: um vínculo que só se sustenta enquanto proporciona satisfação emocional e realização mútua, mas que exige altos níveis de comunicação e confiança.

No entanto, a prática mostra que a construção do lar exige enfrentar tensões concretas:

  • Comunicação: casais que atacam o problema, e não a pessoa, fortalecem a relação. O contrário gera ressentimento e hostilidade.
  • Gestão financeira: as finanças são um dos principais focos de conflito. A ausência de transparência ou de partilha de responsabilidades mina o equilíbrio do lar.
  • Papéis sociais: mesmo em lares onde a mulher assume o papel de provedora, a cooperação e o respeito mútuo são indispensáveis.
  • Infidelidade: além do peso espiritual que a palavra de Deus lhe atribui, a infidelidade desestrutura emocionalmente a família, corrompe a confiança e abre espaço a uma cultura de duplicidade.
  • Educação dos filhos: os filhos são a imagem dos pais e tendem a reproduzir comportamentos vivenciados no lar. A falha aqui é a mais grave, pois compromete a reprodução social.
  • Intimidade sexual: a ausência de cumplicidade sexual é, muitas vezes, prelúdio de distanciamento emocional.
  • Objectivos comuns: projectos de vida divergentes condenam o casal à fragmentação.
  • Interferências externas: terceiros — família, amigos ou redes sociais — podem destruir a privacidade e autonomia do lar.
  • Excesso de independência: quem não está disposto a abrir mão de uma vida de autonomia radical não deve casar-se.

A emergência das pseudofamílias promíscuas

O fenómeno que se observa hoje é o crescimento de pseudofamílias: lares que se apresentam publicamente como tradicionais e monogâmicos, mas que, na prática, são marcados pela promiscuidade.

Esta duplicidade, comum em contextos urbanos e nas elites profissionais, configura uma verdadeira patologia social: homens e mulheres que mantêm casamentos de fachada enquanto cultivam relações paralelas com colegas de trabalho, frequentadores de ginásio ou redes de contactos virtuais.

Nas últimas décadas, as redes sociais transformaram-se no grande palco da vida moderna, mas é nos bastidores — nos inbox privados de plataformas como Instagram, TikTok, Facebook e WhatsApp — que muitas histórias paralelas têm início. Esses espaços digitais, concebidos para a proximidade e a comunicação rápida, tornaram-se cada vez mais territórios férteis para a infidelidade, onde segredos são guardados a sete chaves e a fronteira entre o respeito e a traição se dilui.

O que começa, muitas vezes, com uma simples mensagem de cortesia ou um elogio aparentemente inocente pode rapidamente evoluir para uma troca de confidências, conversas íntimas e, não raramente, partilha de nudez. Pessoas que, socialmente, cultivam a imagem de serem sérias, monogâmicas e comprometidas acabam por adoptar, nos bastidores digitais, um comportamento promíscuo, dividido entre diferentes parceiros.

A comunicação nesses espaços é intensa, profunda e sedutora. Em muitos casos, os laços emocionais estabelecidos com amantes virtuais tornam-se mais fortes do que aqueles mantidos dentro do lar com o cônjuge. A dependência destas interacções digitais, não apenas mina a confiança, como também revela uma crise silenciosa nas relações modernas: a incapacidade de manter, no quotidiano partilhado, a mesma intensidade emocional que se vive atrás de um ecrã.

Mais do que simples “conversas secretas”, os inbox das redes sociais estão a reconfigurar o conceito de fidelidade. Ao proporcionarem anonimato, facilidade de contacto e a ilusão de uma segunda vida, criam um espaço onde o desrespeito se normaliza e onde a traição deixa de ser excepção para se tornar modo de vida.

O WhatsApp, ferramenta quase indispensável no dia-a-dia, também se tornou cúmplice desse fenómeno. Escondido na palma da mão, serve como canal discreto para encontros, promessas e desejos inconfessáveis, reforçando a ideia de que a infidelidade digital já não é um episódio isolado, mas sim um sintoma generalizado da era das redes.

No fundo, a questão que se coloca é simples, mas inquietante: estas plataformas são apenas veículos de um comportamento humano atemporal, ou estarão a moldar e transformar a própria forma como encaramos os compromissos e os valores relacionais?

Sociologicamente, este comportamento revela:

  • A tensão entre normas e práticas: a sociedade continua a valorizar o discurso da monogamia, mas tolera — e em certos meios até glamouriza — a traição e a multiplicidade de parceiros.
  • A normalização da infidelidade: escritórios transformados em lugares de “amantismo”, ginásios como espaços de conquista sexual, e redes sociais como facilitadores da duplicidade.
  • O impacto geracional: crianças e adolescentes que testemunham casamentos de fachada passam a ver o matrimónio, não como projecto de vida, mas como farsa social.

O sociólogo Bauman descreve esse fenómeno como expressão da “modernidade líquida”: vínculos frágeis, descartáveis, regidos pela lógica do consumo. O outro torna-se um objecto de satisfação momentânea, facilmente substituível.

As consequências são vastas. Do ponto de vista social, há erosão da confiança, aumento de divórcios, crescimento de lares monoparentais e uma geração de jovens cépticos quanto ao valor da família. Do ponto de vista espiritual, há leituras religiosas que associam a promiscuidade à acção de forças destrutivas — demónios que instigam soberba, vaidade e incapacidade de compromisso.

Assim, a promiscuidade contemporânea não é apenas questão moral, mas fenómeno sociológico que ameaça a estabilidade social e cultural.

As igrejas, como instâncias normativas, carregam a responsabilidade de reeducar os casais, dialogar sem tabus sobre fidelidade, intimidade, papéis sociais e compromisso. A sociedade civil, por sua vez, deve abrir espaço para discutir de forma honesta os desafios da vida conjugal, sem esconder as fragilidades.

É necessário enfrentar a hipocrisia social: aqueles que em público defendem a família, mas em privado vivem na contramão dos valores que proclamam. Mais grave ainda, a transmissão desta duplicidade aos filhos compromete o futuro da própria sociedade.

Num tempo em que a promiscuidade é apresentada como liberdade individual e até como sinal de modernidade, urge resgatar o valor da família como centro da vida social. Não se trata de negar as transformações contemporâneas, mas de reconhecer que a sobrevivência de sociedades equilibradas passa pela existência de lares estáveis, comprometidos e coerentes.

A família continua a ser a célula fundamental da sociedade. A sua destruição não gera apenas divórcios, mas compromete o tecido social, como um todo. O combate à promiscuidade e à duplicidade conjugal é, assim, um imperativo, não apenas religioso, mas profundamente sociológico.

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