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A estética do silêncio e o grito do preto

Crítica comparativa entre Hlalelane Xtisungo (Olhar a População) e O Preto, de Ivo Mabjaia 

 

Entrar na sala onde se encontra a escultura Hlalelane Xtisungo é como ser fixado por cem olhos que não se abrem totalmente. Não há apenas um rosto, mas muitos, aglomerados na mesma pele de barro, repetindo olhos semicerrados e bocas circulares. É barro vivo, modelado para parecer povo, mas povo ensardinhado, indistinto, algo pior que um “My Love”. 

As bocas não emitem som, mas a sua forma parece preparar-se para um grito que nunca se solta, há nessa figura um grito engasgado, mas não mudo. Aquela e mais esculturas estão expostas na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo, entre os dias 6 e 30 de Agosto, pelos artistas Mapfara e Phamby, com curadoria de Yolanda Couto.

O título, “Olhar a População”, é provocação directa: quem observa quem? E, mais ainda, para quê? Se olhamos, é para entender ou para confirmar o que já decidimos não ouvir? Mapfara, com a aglomeração de faces, parece dizer que olhar não basta, é preciso escutar e escutar implica aceitar que a voz do outro perturbe o nosso conforto.

Essa perturbação encontra eco em O Preto, curta-metragem de Ivo Mabjaia, premiada no Fórum de Cinema de Moçambique (Kugoma), filmada em preto e branco, onde o silêncio é quase absoluto. Corpos jovens estão deitados, imóveis, encostados uns aos outros como se fossem um único organismo adormecido. Entre eles circulam três figuras: um homem negro, uma asiática e um homem branco. quem são essas três figuras? Por que olham com tanto desprezo? O que cochicham? Uma leitura possível é ver nessas figuras três principais forças institucionais de poder: o executivo, o legislativo, e o judicial, consecutivamente.

Eles observam, mexem, retiram objectos, roupas, como quem revira a vida alheia sem pressa nem pudor, retiram a dignidade, as riquezas e a liberdade de se expressar. Há aqui uma economia de palavras e sons que força a atenção para o gesto e para a imagem, há também morte e traição, somos roubados pelos nossos semelhantes. O espectador é colocado no lugar de quem vê, mas não intervém. Até que algo se rompe: um dos jovens desperta, ergue-se e olha ao seu redor e depois diretamente para a câmara. É o momento em que a quarta parede cai, e o filme deixa de ser sobre “eles” para ser sobre “nós”. O olhar é acusação.

Logo depois, a única voz do filme irrompe um grito em changana: “a muhive, a muhive” (“Ladrão, ladrão”). É uma nomeação e uma sentença. É também a cor preta a falar, não apenas pela pele ou pelo enquadramento, mas pela densidade histórica que carrega, é um grito cultural, mas logo foi calado, subornado, obrigado a gritar em silêncio.

Tanto na escultura como no filme, há um jogo de olhares que devolvem ao espectador a sua própria imagem. Na peça cerâmica, esse olhar está fossilizado no barro; no filme, ele é vivo e directo. Mas em ambos, quem vê é também visto, quem observa é interrogado. E é aí que o silêncio se torna linguagem: um silêncio denso, que não significa ausência, mas acúmulo de coisas não ditas. 

Na figura de Mapfara, quem olha toma o acento das três figuras do curta-metragem, ou por outra, nem olha se mistura, se identifica, se perde.

O grito, por sua vez, vai além da voz audível. Na escultura, está insinuado nas bocas abertas; no filme, é contido e breve, mas potente. É cor, é gesto, é olhar, é nudez de quem foi roubado tudo até a voz. É também metáfora de vozes reais que, no país, enfrentam tentativas de silenciamento. É impossível não pensar no caso recente da jornalista Selma Inocência, que em sua página de facebook denunciou ter sido envenenada com metais pesados durante uma estadia em Maputo, num contexto de ameaças relacionadas ao seu trabalho investigativo. A Amnistia Internacional e outras organizações exigiram investigação urgente. Quando este dado entra em cena, a ligação é inevitável: o silêncio estético das obras encontra o silêncio forçado da vida real, e o grito contido da arte encontra o grito abafado de quem denuncia injustiças.

A repetição de formas olhos, bocas, corpos nas duas obras também não é acidental. Aponta para a perda da singularidade: o indivíduo é absorvido pelo colectivo, que tanto pode ser força como pode ser invisibilidade. Nos dois casos, essa massa humana não é anónima por natureza; é tornada anónima por olhares que a recusam a sua individualidade. O papel do artista é devolver-lhe rosto, ainda que seja um rosto partilhado com muitos outros; o papel do espectador é reconhecer que o rosto que olha pode ser o seu.

Em todas as esculturas de Mapfara, coincidem os olhos fechados e a boca aberta, como quem insinua que os olhos nos foram vendados a voz roubada, mas até o silêncio grita. Não se trata de consumir a obra, mas de responder-lhe. 

“Olhar a População” é convite e aviso: se olhas, tens de escutar; e se escutas, tens de agir. O Preto reforça o mesmo aviso com outra gramática: se assistes ao roubo, és cúmplice; se és olhado por quem sofre, és interpelado. Ambas as obras se tornam espelhos que não devolvem a imagem que queremos ver, mas a que precisamos enfrentar.

Por isso, falar de “a estética do silêncio e o grito do preto” não é apenas dar nome a uma leitura possível; é afirmar um campo de acção. É reconhecer que a arte, quando verdadeira, não nos deixa em paz. Obriga-nos a ouvir o que não queríamos ouvir, a olhar para onde não queríamos olhar, e a admitir que o silêncio pode ser tão violento quanto o som que o rompe. No barro e no filme, no olhar e no grito, está a mesma exigência: não basta ver é preciso escutar, e não apenas escutar é preciso responder. Porque olhar sem escutar é veyorismo e escutar sem agir é cumplicidade.

 

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