Falar de «Recados da Alma», romance de estreia de Bento Baloi, publicado em Moçambique pela Fundação Fernando Leite Couto, em Novembro de 2016, e que teve em 2018 a sua edição portuguesa, pela Ideia Fixa, obriga-me a passar pela memória do nosso primeiro encontro. Conheci o Bento na Póvoa de Varzim, durante o mítico festival literário Correntes d’Escritas, em fevereiro de 2018. Uma das muitas mesas a que tive o privilégio de assistir estava subordinada ao tema “Escrevo para dizer aquilo que não sei”. Entre o cartaz de nomes que iriam intervir, surgia um único desconhecido. Bento Baloi fez a sua comunicação e, quando a terminou, eu senti que passara a conhecê-lo um pouco, pois o texto lido, além de muito belo, entrava por esse mundo fascinante do autor e da sua ficção, entreabrindo a porta para quem era o homem atrás da obra.
O auditório apinhado do Cine-Teatro Garrett comoveu-se com a leitura de Bento Baloi e correspondeu com uma enorme e continuada salva de palmas. Comentei a excelência do texto com quem estava nas cadeiras ao meu lado e, após o término da sessão, venci a minha timidez natural para me colocar junto às escadinhas do palco. Queria cumprimentar aquele desconhecido que, por causa de um texto, passara a ser um camarada, um colega. Acima de tudo, queria dar os parabéns ao Bento Baloi por me ter conseguido emocionar. Apertámos as mãos, num sinal de reconhecimento mútuo, certos de que dali em diante não mais seríamos estranhos um do outro. Na sua generosidade, o Bento ofereceu-me, no dia seguinte, um exemplar do seu romance, assim dedicado: «À Isabel e Paulo, com muita estima e amizade. Um grande abraço fraterno com calor de Moçambique.»
Se cito a dedicatória é porque nela estão contidas algumas pistas para uma possível leitura de «Recados da Alma». As dedicatórias do romance, em parte, prosseguem o texto das Correntes, nesse exaltar de uma mãe que já partiu, mas que, a partir do céu, em forma de estrela, continua a iluminar a mente do autor. Se cito a dedicatória é porque quis entender, nalguns trechos, traços do jornalista tornado romancista, tal como acontecera comigo no meu primeiro livro de ficção, sendo uma curiosidade que os nossos livros comunguem o período dos quentes anos de 1974-1975, embora «Recados da Alma» se estenda por outras décadas. Se cito a dedicatória é por ter sentido nas páginas deste romance o calor moçambicano, seja do sol a aquecer a pele, ou da voluptuosidade dos corpos femininos, ou dos ritmos e movimentos da dança xingombela. E não resisto a ler-vos esta citação: «Sol abrasador fustiga Lourenço Marques. A urbe está calma e as ruas silenciosas demais para o que é habitual. De quando em vez uma meia dezena de automóveis percorre o asfalto da Pinheiro Chagas, alguns à esquerda e outra meia dezena para a direita. O vento não sopra. As acácias vergam-se inertes ao calor húmido que se faz sentir.» Por fim, se cito a dedicatória, é por ter encontrado nesta obra sinais de fraternidade e de mãos estendidas ao próximo.
A sinopse do livro refere que um jovem jornalista, durante a cobertura à operação de salvamento de vítimas das cheias do vale do rio Save, acaba por receber um maço de papéis das mãos de um velho comerciante. Ao analisar os papéis já amarelecidos, o jornalista descobre retratos de várias vidas que o transportam para outros tempos, tempos agitados numa cidade ainda chamada Lourenço Marques que se movia tanto ao ritmo de bailes noturnos animados pelos discos de 45 rotações, como ao medo semeado pelos terríveis «mabandido», ou dos sussurros e mensagens subversivas em torno dos nomes Mondlane e Machel. Há um futuro que se começa a escrever e um passado que se começa a apagar, mas para os jovens Mafalda e Eugénio o mais importante residia no amor que, contra todas as vontades e probabilidades, os passara a unir. Depois, no frenesim de pânico, saques e violência iniciado a 7 de setembro de 1974, os destinos dos jovens amantes, tal como os destinos de Portugal e Moçambique, estilhaçaram-se, obrigando a uma separação violenta. E só a história que poderão ler irá revelar se Mafalda e Eugénio se voltaram a juntar…
Não gosto de estragar o prazer da descoberta aos leitores, nem estou habilitado para fazer teses literárias sobre romances. Tal como na sessão das Correntes, apenas posso transmitir ao Bento, e aos seus futuros leitores, as emoções sentidas ao longo de «Recados da Alma». Estamos perante um livro de uma enorme tolerância. «O que seria da história de um país sem as estórias das suas gentes?», pergunta o comerciante que tomou notas, ao longo dos anos, das vivências de amigos, amigas e companheiros. E eu pergunto: que seria da história de um país, ou neste caso, de dois países, se houvesse uma perceção única e intolerante do passado? A generosidade de Bento Baloi reside na forma como mistura o local e o global, o moçambicano e o português, a tradição e o progresso, através de um conjunto de personagens que nos dão visões diferentes sobre os mesmos assuntos, assuntos graves, sensíveis, geradores de divisões, como a segregação, o amor multirracial, o orgulho pátrio, o colonialismo, o preconceito, sem jamais cair num romance panfletário ou ideológico. Há uma espécie de olhar fraterno, nada fraturante, para com cada personagem, como se o autor quisesse contextualizar e compreender cada ato realizado ou cada ideia expressa. E, na verdade, todos somos filhos de contextos, seja um elemento do gangue mabandido, uma retornada da ponte aérea ou um membro do braço armado Dragões da Morte.
Apesar de nos dar pedaços da história de Moçambique, quer na sua luta pela independência, quer nas subsequentes cisões internas, ou até da vida dos portugueses obrigados a partir de um país que consideravam o seu, nunca se encontra na escrita de Bento Baloi um discurso maniqueísta ou uma tentativa de acerto de contas. Pelo contrário, mesmo nos casos mais delicados, o autor limita-se a expor os acontecimentos históricos e a deixar que as emoções das personagens, e não as suas, conduzam a trama e o leitor. E é neste grande detalhe que a fraternidade e generosidade de Bento Baloi se agiganta, aceitando ser uma ponte, uma mão estendida, em vez de um veículo de ódio. Há em «Recados da Alma» o mesmo afeto improvável que liga Eugénio, empregado preto, ao seu patrão branco racista. Há em «Recados da Alma» a demonstração de que o preconceito, o bem e o mal, não são questões de raça ou de nacionalidade. São questões do ser humano.
A própria escrita de Bento Baloi funciona como elo entre Moçambique e Portugal, por estar escrito num português esmerado, entrecortado com os termos intraduzíveis das línguas autóctones, que, tal como Mia Couto referiu, é capaz de «contar uma história com singular eficácia, mas guardando uma marca poética que envolve e seduz os leitores». A sedução e força do amor estão, aliás, presentes ao longo de todo o livro, nas mais variadas vertentes e situações, numa tentativa de superar os traumas de uma relação que começou torpe – o colonialismo –, e prosseguiu aos solavancos – as vidas alteradas num segundo, as cicatrizes na pele e na alma –, sem com isso se suavizar a história passada ou evitar realidades dos novos tempos, como o imperialismo económico. «Recados da Alma» é um livro que tem política, mas que não é politizado, pois procura manter uma equidistância ideológica. E, porém, é um livro de causas, um livro militante, um livro que se entrega às suas personagens, numa ligação muito próxima, muito afetiva, que evita juízos morais, com base nos estereótipos, preconceitos e visões históricas que, precisamente, vão sendo desvelados nestas páginas.
Foi esta ligação umbilical de Bento Baloi às emoções humanas, provocadas por pessoas reais, como uma mãe falecida, ou por personagens inventadas, como o Eugénio e a Mafalda de um romance, que eu descobri no texto das Correntes d’Escritas e que confirmei em «Recados da Alma». A grande diferença é que no início éramos desconhecidos e agora já nos conhecemos um bocadinho. Obrigado e boa leitura.
Paulo M. Morais
Vila Nova de Gaia, Maio de 2018
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