De algumas semanas prévias até aquela, estranhos eventos têm ocorrido na povoação de Nguileni, aglomerado comunal que se destaca pela produção agrícola e de criação de manadas de gado bovino e caprino.
Na residência do velho Mugueni as noites têm sido de agitação nos estábulos. O berreiro dos cabritos despertava os residentes. Dir-se-ia que no local algum predador lá penetrara – que os havia em abundância –, alguma serpente inoportuna, algum felino tresmalhado lá das serras ou, porque não?, algum meliante em alguma tentativa de um assalto. Estes, todavia, e como é da experiência de todos, não ocorrem nos estábulos, mas sim durante as pastagens. E para comprovar e eliminar a hipótese de furto não existem testemunhos de faltas de animais entre os efectivos dos criadores.
O velho Mugueni faz vigília aos seus estábulos, acoitado na escuridão de uma sebe crescida nas traseiras do pavilhão principal da casa. A noite decorre tranquila. Os animais ruminam as reservas de alimento, outros sonecam preguiças no conforto do alpendre que os abriga.
Eis senão quando, alguns dos animais erguem-se sobre as patas e agitam-se no terreno do pavilhão. Um vulto movimenta-se com vagares entre aqueles. É de estatura alta, de uma silhueta que se assemelha à de um homem. Num gesto que parecia automatisado pelo hábito ou por algum instinto particular, alcançou um dos animais e imobilizou-o entre os braços. Arriou os calções e fez o que para ali o trouxera.
O velho Mugueni presenciou aquele evento de bestialidade do intruso numa das suas cabras com um misto de perplexidades. Poderia facilmente imobilizar o criminoso e executá-lo no local ou ministrar-lhe um correctivo à medida da violação. “Para cada crime, a devida punição”, assim pensou.
Com uma agilidade felina saltou sobre o vulto daquele homem. Tamanho pandemónio nunca se vira naquele lugar. O homem a tentar libertar-se dos apertos do Mugueni e este a asfixiá-lo com a tenaz dos braços. Os da casa acorreram munidos de mocas e de varapaus. Cada um contundiu o invasor o “melhor” que pôde. Com os calções ao redor dos tornozelos, ele foi imobilizado com cordas húmidas e encaminhado para a penumbra do recinto do quintal. Aturdido pela sova contínua gemia de dores e balbuciava arrependimentos aos quais os da casa faziam ouvidos de mercador. O correctivo prolongou-se até ao seu desfalecimento. Dele sobrava apenas um corpo imóvel, coberto de hematomas e lacerações.
“Oh-oh-oh! Afinal é o Muthiasse! Inacreditável!… Afinal é ele que anda a violar as nossas cabras?!…”, espanto geral na comoção da noite.
“Quem diria, este rapaz que parecia tão sossegado e comedido, respeitador e tudo, a fazer isto nos nossos currais?!..”, e uma bofetada com a força de uma tempestade estalou na face do aludido.
Estava distante da imaginação dos habitantes daquele povoado que a série de eventos que ocorriam poderia ter alguma relação com os actos de bestialidade tão correntes. Em certos currais algumas cabras manifestaram sinais de infecções nos respectivos traseiros. Apresentavam feridas que não cediam às terapias ministradas pelos conhecedores do ofício. Outros registaram mortes de alguns animais com semelhantes afecções. Era, isso sim, um mistério que nem os mais sagazes adivinhos conseguiam esclarecer.
“A verdade”, tal como diz o adágio “é como um furúnculo; qualquer dia acaba por rebentar”. Estava encontrada a resposta às dúvidas sobre as causas dos tumultos nos currais de Nguileni.
A madrugada chegou com novidades. Uma multidão de vizinhos aglomerou-se no recinto do quintal do velho Mugueni. As bocas não fecham de espanto, os olhos não pestanejam diante da figura do Muthiasse manietado e acocorado ao lado do tronco de uma mangueira. Cada qual, cada vítima das incursões daquele, acha-se no legítimo direito de dar a sua quota parte de desforço pelos danos nos seus estábulos.
A razão prevalesceu. Convocou-se uma banja (1) de emergência na qual compareceram os graúdos do lugar. Alguns adiaram compromissos com as machambas e com o pastoreio. Como perder aquela oportunidade de presenciar o julgamento público daquele transgressor da ordem e moral públicas. Como perdoar aquele acto de invasão a propriedades alheias e molestamento de animais?
Os ânimos exaltaram-se. Não havia consenso sobre as penas a aplicar ao prevaricador.
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- banja: reunião popular
O chefe de terras, o mulumuzana (2) Zunguene, revestido da autoridade e da sabedoria secular com que os deuses lhe prouveram, proferiu a seguinte alocução:
“Nestas terras de Nguileni os ancestrais concederam-nos a graça da paz e do entendimento mútuo. O sentido de entre-ajuda é um principio que todos cultivamos. O problema de um é aflição doutro. Compartilhamos das nossas alegrias e tristezas. O respeito pelo bem alheio é uma doutrina que sempre nos guiou, é o farol das nossas existências. A sombra de um é sombra doutro, se aquele o permitir. Não vacilamos nesse princípio de respeito pelos bens alheios. É por isso que nesta comunidade não existem crimes. Somos vigilantes dos nossos valores e bens, materiais e espirituais. Somos defensores da nossa moral, a mesma que nos foi legada pelos antepassados”.
O mulumuzana Zunguene fez uma pausa e volveu um olhar feroz ao Muthiasse.
“Este criminoso que temos aqui à nossa frente ousou desafiar os nossos usos e costumes. Como é já do conhecimento de todos violou as regras que orientam a nossa vida. Isso é imperdoável e merece a devida punição”. E sentenciou:
“Já que é da sua preferência violar cabras, deve fazê-lo de um modo por todos aceitável. Como todos os homens dignos praticam aqui no nosso seio, e em geral, ele deve lobolar (3) a cabra que violou. E não só: deve preparar-se para se casar com ela, em nossa presença, sob o testemunho de toda a comunidade de Nguileni”.
Ululações e uma prolongada ovação de aprovação encheram a manhã de alegria. Era um acto de justiça para com as famílias lesadas, uma lição de que a bestialidade não tinha espaço naquele lugar, um crime hediondo que feria a moral pública e transgredia as normas de bem-estar nas comunidades.
O Muthiasse beneficiou de uma liberdade condicional. Era-lhe facultado o direito de se preparar para os eventos que precederiam os rituais do lobolo (4) da já cabra-noiva. Esta ficou sob guarda do proprietário, não se vá dar o caso de o criminoso abatê-la e pretextar razões de variada índole para justificar a morte do animal.
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(3)lobolar: pagar um dote de compromisso aos parentes da futura noiva.
(4)lobolo: dote em dinheiro e bens.
Duas semanas transcorreram depois daquele julgamento.
O Muthiasse compareceu à cerimónia do lobolo da cabra-noiva acompanhado por dois cavalheiros e respectivas esposas, todos de ar compungido, em representação dos pais do “noivo”. Transportavam consigo todo aquele rol de encomendas que se presumem que devem ser ofertados aos “sogros”, entre capulanas, lenços de cabeça, um garrafão de vinho tinto, um casaco e uma bengala para o velho, um anel simbólico para a “noiva” e, como é mandatório, uma quantia avultada em dinheiro, chave essencial que franqueava as portas daquela que doravante seria “a casa dos sogros”.
O ritual decorreu no meio de uma algaraviada de vozes e hilaridade, concorrida e presenciada por uma multidão de curiosos. As expectativas eram enormes, pelo ineditismo e pelo alcance da medida justa e histórica.
Ao lado do Muthiasse, a cabra, açaimada a uma corda decorada de serpentinas e chocalhos ao pescoço, pousava tranquilamente, a ruminar a refeição da manhã.
Durante aquela cerimónia foram aprazadas datas para formalizar detalhes sobre o matrimónio do “casal”.
O Muthiasse era um ser humano que de vida possuía apenas a capacidade de falar. Noites inglórias de insónias, de pesadelos e profusas transpirações constituíam a sua jornada de expiação. Durante os dias ia ao pastoreio exonerado das rotinas e distante dos companheiros, um sonâmbulo que percorria as jornadas da vida sem meta nem fenda onde ancorar-se e esconder a vergonha pelo escândalo. Considera um plano de fuga para lugares distantes, onde ningém o conhecesse ou do seu passado tenha ouvido falar. Mas para onde e como? Plano latente, imposível de realizar, porém.
As cerimónias do matrimónio do Muthiasse com a cabra realizaram-se um mês depois das do lobolo, na residência do velho Mugheni. Oficiou o evento o chefe de terras, o mulumuzana Zungueni, que possuía esses poderes civis e oficiais. Naquelas participou toda a comunidade de Nguileni com cantigas de teor educativo, danças de makwayela (5), de nghalangha (6) e de chigubo (7), manifestações tradicionais e obrigatórias naquele tipo de eventos. As prendas aos “noivos” choveram, provenientes de todas as famílias da comunidade. Um fotógrafo ambulante viajou da vila de Mandhlakaze para registar o acontecimento como testemunho para a posteridade.
Ao fim da tarde as cerimónias atingiram o rubro de regozijo. Foi anunciado o xiguiana, o acompanhamento festivo dos nubentes ao seu lar, a entrega formal da “noiva” à sua nova família: o agregado Mathe, partilhado com o seu “esposo”, o Muthiasse Mangue. Este segura uma ponta da corda nupcial, a outra rodeia o pescoço da cabra-noiva decorada de véu e grinalda. Tranquilamente, ela mastiga confeitos confeccionados com palha seleccionada. Ambos caminham com o passo cerimonial da ocasião, no ambiente festivo de ululações, de cantos e danças.
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Dos eventos pós-nupciais não reza a História. Ficou, porém, na memória de toda a comunidade, a lição de que a violação e o usufruto de bens alheios pode, um dia, trazer amargos de boca inesperados e definitivos.
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5) makwayela: dança popular
(6) nghalangha: dança popular
(7) chigubo: dança popular
Pretória, Fevereiro 2024