Sim, eu tenho fantasmas, nem todos eles mortos
Fazendo poeira dos meus sonhos, girando e girando
Ao redor na minha cabeça.
in “Yes, I have ghosts”, David Gilmour.
Tornado é uma história que começa in medias rés, isto é, no meio dos acontecimentos. Quando, logo no primeiro período, a narradora afirma Soube anos mais tarde, quando vasculhava nos arquivos do Notícias à procura de uma maldita crónica ou sinal daquele dia (…), já se percebe que no acto da enunciação discursiva houve o cuidado de se evitar o real princípio das coisas, de modo a fazer desse mesmo princípio narrativo algo mais imaginativo e apelativo. O começo da história de Teresa Noronha diz muito em termos das modalidades técnico-narrativas adoptadas. Ao invés de uma proposta cronológica, com um início, meio e fim linear, a autora textual (des)arrumou os episódios de tal ordem que arroja ao leitor a identificação dos eventos cardinais. Nesse sentido, aliás, a tarefa do leitor não está de todo facilitada, pois, sem respostas categóricas e muito menos dadas no instante em que se desejam, o enredo o impulsiona à uma visão 360º graus sobre os fenómenos e as suas motivações.
Editado pela portuguesa Exclamação, a proposta literária de Teresa Noronha é daquelas narrativas à volta de sobressaltos que atravessam o corpo e alma. No centro da ficção está uma menina que cresce sem nunca se desfazer das lembranças da infância, uma personagem que quer aprender a compreender e a domar a dor, o amor intermitente e a perda de um irmão que, aos 20 anos de idade, por decisão/ indecisão entrega-se aos braços da morte. Esse suicídio é a primeira grande imagem indefinida da história. Enquanto a trama é desenrolada, colocamo-nos fixos nessa condição na vã tentativa de levantar cortinas possíveis rumo à visualização a preto e branco dos factos.
De igual maneira, é o episódio da morte que neste Tornado inaugura uma narrativa marcada por inscrições domésticas, relembrando, certamente, que em cada Homem habita uma potencial novela digna de ficção. Talvez por isso, ao lermos Teresa Noronha ficamos com a vaga sensação de que a escritora fechou os olhos para ouvir os sussurros dos silêncios, identificando, de seguida, uma família normal, com ligações a África, Ásia e Europa. Nessa apresentação genealógica, é interessante a proposta de debate sobre a identidade, sobre como as pessoas se vêem em função dos olhos dos outros, sobre o que é ser moçambicano, goês ou português num mundo que atribui demasiada importância à cor dos anjos.
O contexto doméstico desta história, não obstante o quadro sombrio sempre atrás de alguma porta por abrir, é um leitmotiv para pensar a infância, parafraseando Maurice Blanchot, esse momento da fascinação, essa idade de ouro que parece banhada numa luz esplêndida porque irrevelada. No caso de Tornado, a infância é um lugar corrompido, para onde se regressa porque a maturidade resiste a aceitar o inesquecível. Logo, denota-se na personagem central uma espécie de conflitos tácitos entre a criança esperançosa, a adolescente irreverente ou a mulher inconformada.
A infância da narradora autodiegética (que integra o enredo como protagonista), presente sempre de forma cíclica, é crucial para a trama porque, historicamente, coincide com alguns eventos que contribuíram para a independência de Moçambique. Aí percebe-se que o tempo, para Teresa Noronha, é deveras importante, inclusive, porque é no rescaldo das lembranças da protagonista que se adivinham acontecimentos para lá da ficção. Na tenra idade iniciam os dramas da narradora. Do mesmo jeito, é na fundação do Estado moçambicano que as incertezas em relação ao futuro colocam uma certa sociedade eufórica e inquieta.
Partindo dessa história familiar, que aparentemente é sobre uma partida inesperada, Teresa Noronha tem o cuidado de se apropriar dos contextos da época em que escolheu fixar a narrativa. Assim, esses Moçambiques orientais, africanos ou ocidentais aparecem a recuperarem fragmentos que se foram perdendo nos labirintos da grande História nacional no último meio século.
À semelhança da protagonista de Tornado, cuja felicidade é condicionada pela morte prematura do irmão, o país que Teresa Noronha ficciona surge com cheiro à morte (veja-se os casos dos fuzilamentos públicos). Em determinados momentos da trama, a morte não é apenas o outro lado da fronteira, é uma imposição, se preferirmos, uma chantagem que se acredita contribuir para estabilidade social. A morte traduz a incapacidade de aceitar a diferença ou a intolerância acirrada quanto à indiferença, semeia ódio e ainda revela a ambiguidade da vida. Atenta a isso, a narradora atira: “A morte é uma floresta cerrada onde se escondem todos os segredos, anteriores, posteriores, todas as palavras que não encontram a luz do sol” (p. 13).
É no jogo repleto de suspense em que se movimentam as personagens, transportando a ficção a diversas regiões. Primeiro, os espaços são responsáveis pela definição e fixação realista ou não da história, conforme observa Yves Reuter. Segundo, propiciam a fundamentação das visões externas sobre as diferentes tonalidades raciais, étnicas ou culturais que constroem Moçambique. Falando de si, a narradora vitaliza uma condição sobre o contraste entre a afirmação e a negação, conforme o tempo e o espaço geográfico em que se encontra:
A nossa cor nunca foi a dominante. No tempo colonial não éramos brancos, éramos arraçados de monhés, canecos de cú lavado, o termo pejorativo para falar de um filho de goês e portuguesa. No período pós-colonial, eu não era negra e se, em Lisboa, me tomavam por brasileira ou por cabo-verdiana, já em França perdiam-se em cogitações sobre de onde seria e espantavam-se quando descobriam que era africana. Lá tinha de explicar as deambulações do meu ADN antes de assentar arraiais em Moçambique, (p. 38).
Escrevendo sobre a mocidade da personagem em permanente paralelismo com a de um território, incluindo essas situações ligadas ao sentido de pertença, Teresa Noronha humaniza determinados capítulos da História moçambicana, fazendo da verosimilhança um factor de inteligibilidade contemporânea. Este argumento ganha relevo com a reconfiguração do lugar, no entanto, nunca se trata de recontar episódios existenciais, mas, de certo modo, se trata de um processo de apropriação, de mergulhar na memória particular e transmissível, quiçá, para impedir a própria morte de morrer. Seja como for, o que se ouve no discurso é a narradora recusando-se a esquecer o tempo que passou. Quem pode esquecer o que passou?
***
Se, por um lado, toda a história é história das personagens, por outro, a manipulação dessa mesma história depende do narrador. No caso de Tornado, a protagonista acumula a função de narrar, de desenvolver ou sofrer acções. A enunciadora do discurso encontra-se profundamente envolta aos eventos. Sofre pelos outros e por conta própria, como se o destino a tivesse reservado apenas momentos de angústia. A melancolia é o principal fermento da narrativa. Logo, qualquer proposição alegre diluiu-se facilmente, já que Tornado também é isso: uma proposta antagónica entre a possibilidade de ser e a dureza da circunstância.
No meio de várias crises ideológicas e sociais, a narradora absorve, de facto, tempestades que a arrasam, transparecendo o estado do espírito com que os eventos são revelados. A esse respeito não há nada a esconder. Pelo contrário, é a necessidade de descrever acontecimentos, muitas vezes ao ritmo catártico do Yes, I have ghosts, de David Gilmour, que amplia o universo interior da protagonista. Ou seja, a narradora de Tornado sofre infinitamente pelas complicações do seu destino. A dor, essa sensação que segundo Anton Tchekov leva o Homem à perfeição, é tanta que o silêncio não sorve. Então, a tentativa de diálogo com a memória do irmão, à laia de monólogo interior, apresenta-se como o grande trunfo de um relato introspectivo totalmente diferente do que é habitual na ficção moçambicana. Assim é porque Teresa Noronha arrumou o universo diegético de modo a que a lembrança e o diálogo mudo com o morto, por parte da protagonista, sustentassem a narração direccionada a quem já perdeu a faculdade de resposta.
Basicamente, Tornado é uma construção anímica da protagonista que evolui em espiral. A ficção reúne fortes vestígios psicológicos adequados à tragédia grega. A personagem central é a síntese da narrativa. A história cabe toda nela, mas isso não a proporciona um domínio demiúrgico sobre as acções. O acto de narrar, claro está, é uma maneira de a narradora tentar compreender as razões de a sua própria vivência ter sido lesada, de certo modo, por uma entrega desinteressada ao amor e, depois, à liberdade.
O livro de Teresa Noronha é uma odisseia sobre a degeneração da vida e sobre o salto que sempre é possível dar em direcção à luz. É uma narrativa incisiva, na qual os tornados da narradora (receios, desilusões, perdas, solidão) se confrontam com tantos outros tornados que movem o mundo (preconceitos, intolerâncias, extremismos, racismos, patriotismos dissimulados). Realmente, há aqui uma lição sobre aprendermos a lidar com os fantasmas que nos rondam sem que a permanência dessas entidades nos sufoque. Tornado é uma história sobre matar esses fantasmas ou domestica-los.
Título: Tornado
Autor: Teresa Noronha
Editora: Exclamação
Classificação: 16