Oiço com um misto de júbilo e nostalgia Zena Bacar. Júbilo por celebrar esta voz única da música moçambicana e, indubitavelmente, grande voz da música africana; e nostalgia porque ela desaparece hoje do reino dos vivos, embora seja compelido pelo cliché a afirmar que a magnificência da sua arte está para lá desta circunstância acidental da vida. Oiço estes ritmos, que são ritmos da minha infância macua, uns mais dolentes do que outros, outros tantos mais ritmados, todos eles com uma marca distintiva: a bela, profunda, triste, majestosa e incomparável voz de Zena Bacar. Oiço-a cantar e vejo aquela paisagem onírica, quente e exuberante, de mulheres belas com capulanas garridas, naquela sincronia mágica do tufo, algumas saltando à corda, sempre fascinantes. Oiço Zena Bacar e os Eyuphuro: tufo, namahandja, masepua, djarimane, morro e chakacha. Zena é uma inspiradíssima voz moçambicana que arrebatou o mundo. Levou consigo esta singularidade e transformou-a em algo de uma beleza rara e transcendente. Ela e os Eyuphuro foram dos pioneiros no universo da chamada World Music. Os palcos do mundo não ficaram incólumes ao seu feitiço, ao seu incrível fascínio, à sua arte e à sua expressão única. Ela é, seguramente, a mais universal das cantoras moçambicanas.
Lembro-me, remotamente, de “A muara ya N`rake”, que tocava na rádio, quando a rádio era Rádio Moçambique (RM), nos primórdios dos anos 80. A esposa do senhor N´rake, que põe m’siro e anda a cirandar pela cidade, vestida ao seu jeito, consciente da sua beleza, vaidosa e exibida. A vaidade da mulher macua foi um dos traços essenciais na música de Zena Bacar. Muitas vezes para a celebrar, outras tantas para criticar quando ela significava desvio social. Por isso, ela cantava “Orera kurrera” (alerta para a insensatez que a vaidade provoca). Há muito de lunar, não só na voz de Zena, como nos ritmos e nas letras: “Kihiyeni” (a beleza não significa prostituição, canta ela, eu não minto, repete ela, pôr m’siro na cara não é prostituição, diz a cantora, zangada com esse olhar preconceituoso e a maledicência alheia) ou “Nuno Malani” (mulher abandonada que adverte à filha para as armadilhas da vida ou dos homens; quando a própria filha se vê também abandonada e com uma criança nos braços, ouve a voz da consciência que lhe lembra que, quando a mãe lhe chamava à atenção, ela dizia ninguém me manda, estou-me nas tintas) são paradigmas dessa tristeza, desse lancinante lamento social, dessa mulher vítima da sua beleza e da sua presunção, desse estigma que a beleza macua impõe. “Nuno Malani” tem um balanço e um ritmo e uma beleza e essa exuberância macua. “Kihiyeni” é profundamente melancólica. Profundamente dolente. É de uma beleza dilacerante e dilacerada.
Vivi, entre 1975 e 1980, em Nacala. Aqueles ritmos, muitas vezes dolentes, nostálgicos, profundos e tristes, lembravam-me a minha infância passada naquela cidade com encostas lambidas pela erosão, as ruas de poeira e amendoeiras, o calor obsidiante, o mar incrivelmente verde-azul e as mulheres sempre carregadas, mas caminhando com uma elegância inabalável. A beleza das mulheres que tantas vezes concitaram este meu lado lírico que advém dessa passagem imprescritível por Nacala. A língua macua, os vocábulos muitas vezes ininteligíveis para mim, a entoação, lembrava-me a língua que eu ouvia, naqueles anos em que lá vivi. Quando, nos anos 90, vivia e estudava no estrangeiro, numa viagem a Bruxelas, descobri, na Fnac, o disco Mama Mosambiki dos Eyuphuro. Ouvi-os e exultava com a sua música. Os seus solos de guitarra, aquela acústica, a percussão, as vozes, a pungente e lancinante voz de Zena Bacar. Aquele disco era simultaneamente melancólico e jubiloso. Aquela tristeza era bela e profunda. Aquela voz e o seu lamento social, aquela voz que alertava as mulheres para as contradições do mundo. Eu ouvia obsessivamente os Eyuphuro e orgulhava-me por ouvi-los e saber deles nos palcos do mundo. Oiço-os de novo. Oiço-a de novo. Oiço a Zena Bacar. A belíssima voz da Zena Bacar. A mamã Ana Titos, uma macua de Zavala, bela e hierática, nos seus invejáveis 75 anos, dos quais expendeu 50 em Nampula, traduz-me a beleza intraduzível destas músicas, cujo ritmo sempre me encantou.
Os Eyuphuro, num tempo em que Moçambique era conhecido como o país mais pobre do mundo, quando estava atolado na lama de uma guerra sem solução militar, com moçambicanos refugiados, país assolado pela seca e pela fome, davam uma outra notícia sobre nós ao Mundo, falavam de uma sociedade onde também era possível cantar a beleza, os sonhos, a despeito das insofismáveis contrariedades do quotidiano, mas longe do anátema da violência e da guerra que se nos colava à pele. Os anos 80 têm também, por isso, algo de extraordinário. São anos trágicos e belos, em toda a extensão da contradição que esta adversativa exige. Se, por um lado, foram os anos de extrema violência, de extrema indigência moral e material, onde a guerra atinge os seus insuportáveis limites, onde a provação dos moçambicanos conheceu o estado do inusitado, se por um lado significaram isso, aquela década também foi profícua e proficiente em termos criativos. Não só na literatura, que é o domínio que eu melhor conheço e acompanhei e estudei, mas em outros tantos domínios da criação. Os melhores talentos pós-independência ou emergem ou se afirmam nos anos 80. Foi naquela década que proclamámos os nossos sonhos e foi na mesma década em que os vimos derruídos. A esta distância recordo-me da explosão dos ritmos e canções, das letras e melodias, das experimentações ou caminhos que se fizeram. São muitos os conjuntos que irrompem, as vozes que passam a povoar o nosso imaginário, as propostas, a inovação. A verdadeira explosão da moçambicanidade. De Norte a Sul, de Este a Oeste. Eyuphuro, em Nampula; 1º de Maio (Armindo Salato compôs “Jaqueline”, que foi usado como indicativo pela BBC, num dos programas emitidos em português), de Quelimane; Madala, Romualdo ou David Mazembe, da Beira; e tantos outros que viviam e criavam em Maputo. A Rádio Moçambique desempenhava um papel incontornável. Era a editora moçambicana, por excelência. Os músicos gravavam e registavam lá as suas composições. Mas a RM também criou o seu grupo e albergou algumas das figuras lendárias do cancioneiro moçambicano. A EME, do Eddy Mondlane, e a Movimento, do Aurélio Le Bon, também têm créditos insofismáveis na afirmação dos nossos músicas naquela década exemplar.
Era comum ouvir os Hokolókwe, Os Galtons, os Soyus, a Orquestra Marrabenta Star Moçambique, os Alambique, Xigutsa-Vuma (experiência efémera de Simeão Mazuze – que cantou “Bilibiza”, uma crítica dos campos de reeducação – e Pedro Langa), Ghorwane (fundado por Pedro Langa, em 1983; Roberto Chitsondzo junta-se-lhe em 1984), José Mucavele (belíssimo “Atravessando Rios”), Trio Arão Litsure, Hortêncio Langa e João Cabaço, João Cabaço e a sua comovente “Mamana”, Chico da Conceição (o seu pungente “Ussiwana”), Mingas ou Dulce, Guê-Guê ou Eva Mendonça, os manos Willy e Aníbal, Joaquim Macuacuá (oh, Dadinha!), Fernando Luís (para mim “Maninha” ou a evocação de Bill Cuca, mas do que “Zavala Toté”), Elvira Viegas, Resiana Jaime, ou Elsa Mangue, Filipe Nhassavele, Avelino Mondlane, Chico António, José Guimarães, tantos, tantos. Alguns ganham o concurso Descobertas da Radio France International. Wazimbo, que fora companheiro de Sox, Milagre Langa, Zeca Tcheco ou Alexandre Langa, na banda da RM, emigra, nos anos 80, para o conjunto Orquestra Marrabenta Star de Moçambique. Gravam dois discos na etiqueta alemã Piranha. Yana, que lançara, em 1982 “Que Venham” – eu estava no comício, da Praça da Independência, quando Samora desafiou o apartheid depois do ataque à Matola: “que venham, que venham, mas que venham depressa! – , com todo aquele fulgor patriótico, faz uma Orquestra Infantil memorável. Né Afonso, o Tio Turutão, gravaria “Bons Sonhos”. Pedro Bem vai para Portugal, Costa Neto também irá, Childo, outro emigrante, João Paulo, Jimmy Dludlu ou Rosália MBoa para África do Sul, onde vão tantos outros, como Gito Balói (assassinado aos 40 anos à saída de um espectáculo em Joanesburgo), que funda o Tananas e tem grande sucesso nos anos ulteriores, como terá Jimmy Dludlu, nome marcante do jazz africano. Stewart debuta cantando Dany Silva. Ouvia-se Feola ou Magid Mussá. A RM promovia o Ngoma Moçambique, depois da Parada de Sucessos. Fany Mpfumo morre nessa década. Ernesto Ndzevo toca bandolim. Alexandre Langa denuncia a candonga. Fernando Azevedo é uma presença discreta mas decisiva. Xidiminguana canta, viera de outras décadas. A guerra recrudesce. A paz é o sonho de todos. Ana Juliana escreve e canta “Poema para a Paz”.
Quando, no início de 90, oiço os ritmos jubilosos de “Nuno Malani”, composição de Zena Bacar, incluída no disco Mama Mosambiki, lançado pela editora de Peter Gabriel, Real World, eu exultei. Começara a saga da World Music: os sons maravilhados de África, da Ásia e da América Latina. Os sons do Mundo. Os sons do outro Mundo. Peter Gabriel tinha e tem um registo de activista muito importante e sobretudo combatera o apartheid através da música e do seu activismo. Mama Mosambiki foi dos primeiros discos – o décimo da colecção – dessa onda avassaladora que seria conhecida como a World Music. Antes dos Eyuphuro tinham apenas gravado, na editora de Gabriel, o congolês Tabu Ley Rochereau, então famosíssimo, marido da M´bilia Bel, outra cantora famosa, ou o tanzaniano Remmy Ongala, para falar de cantores africanos. O ugandês Geoffrey Oryema, o congolês Papa Wemba, entre outros, viriam depois, no belo catálogo de Gabriel. Os Ghorwane, com Majurugenta, seriam o disco 29 da mesma colecção. Parece despiciendo, mas quando Peter Gabriel lançou a etiqueta, em 1989, a chamada música tradicional tinha acesso limitado aos mercados internacionais. Na década seguinte, iríamos assistir a uma verdadeira explosão. Buena Vista Social Club, resgatados por Ry Cooder, só seriam possíveis anos mais tarde. Cesária Évora pisa descalça os palcos da consagração mundial.
Peter Gabriel fora o vocalista e líder dos Genesis antes de se lançar numa carreira a solo incrível. Phil Collins iria saltar das baquetas e assumir a liderança após a sua saída. Foi através do disco So, que incluía as músicas “Big Time” ou “In Your Eyes”, que Gabriel se tornaria uma lenda. Aliás, a sua longa parceria com o senegalês Youssou N´dour, com quem canta esta e outros tantos sucessos, é célebre. “Biko” e a campanha pro-Mandela são icónicas na vida e na trajectória de Peter Gabriel. Gimo Remane haveria de compor, curiosamente, uma música intitulada “Mandela”, que não está no disco publicado pelo Peter Gabriel e pela Real World. Não é das melhores músicas de Remane, o autor de “Samukhela”, talvez a sua mais conseguida composição. Curiosamente, Zena Bacar é autora de algumas das mais belas músicas do grupo: “Kihiene” ou “Nuno Malani”, acima descritas, ou as famosas “Yellela” e “Ophentana”.
A biografia de Zena era e continuaria parca. Dela eu sabia o básico, que viera da Ilha de Moçambique, onde nascera em 1949, crescera no Lumbo, tivera uma infância pobre e começara cedo a trabalhar para sobreviver. Estudou pouco e cedo se tornou pescadora. Teve um filho, que morreu, o que foi uma dor até ao fim. Começou a cantar muito nova e foi em Nampula onde se encontrou com Omar Issá, Gimo Abdul Remane, Salvador Maurício, entre outros músicos que viriam a fundar o Eyuphuro em 1981. Isto precisamente nessa década prodigiosa de 80. Em 1984 lançam um primeiro conjunto de composições com título homónimo: Eyuphuro. É desse tempo “Orera Kurrera”. Começam a viajar pelo mundo: Suécia, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Portugal, Alemanha, EUA, Reino Unido. Viajam por África. Zimbabwe, na altura um ponto de encontro importante, entre outros países. Eyuphuro e Zena eram a imagem de Moçambique. O título do disco da Real World é, por conseguinte, de grande alcance: Mama Mosambiki. Zena é isso mesmo: Mama Mosambiki. Não creio que tenha havido uma cantora com a dimensão internacional que ela teve. Se Cabo Verde soube alçar-se na projecção de Cesária e fez da cultura um instrumento de afirmação como país e como nação, como identidade e personalidade, nós fomos incapazes de fazer o caminho aberto por Zena e seu grupo. Nós desperdiçámos Zena Bacar. Não soubemos ser grandes nas pequenas coisas. Procuramos a nossa grandeza onde ela, provavelmente, não existe. Queremos ser grandes onde somos pequenos. Somos pequenos onde deveríamos ser grandes. Muitas vezes somos ufanos naquilo em que somos insignificantes e distraímo-nos perante a nossa magnificência. Zena Bacar cantou genuinamente o seu quotidiano, a sua condição, a condição das mulheres da sua terra e atingiu com isso uma imensa estatura no mundo. Zena cantou Moçambique, simplesmente. Foi uma intérprete da moçambicanidade, uma genial intérprete do ser moçambicano. Foi-o nas pequenas coisas. Aqui está a grandeza das pequenas coisas. É por isso que ela é importante. Essa importância advém-lhe dessa capacidade de ter transformado o seu pequeno mundo num imenso planeta criado pela sua belíssima voz.
Depois de Mama Mosambiki gravam Yellela e um disco comemorativo 25 Anos. Gimo Remane emigra. Entretanto, o grupo dissolveu-se e Zena Bacar passou pelo drama do alcoolismo. Passou pela IURD. A dor insuperável pela morte do único filho não cessa. A doença. Foi uma verdadeira descida ao Inferno. Ainda recuperou. Há muito que eu não tinha notícia dela. Vi-a cantar algures, aqui há tempos, mas era uma sombra daquela mulher que brilhara nos palcos do mundo. Ela redigia, no fundo, com o seu percurso e a sua tragédia, o roteiro pré-existente que conduz a acidentada carreira dos músicos moçambicanos. Recordo-a aqui, com um misto de tristeza e de júbilo. Tristeza por vê-la partir, aos 68 anos, júbilo por ouvir estas extraordinárias músicas que ela compôs e cantou, por celebrar esta voz profundamente melancólica, muitas vezes dilacerada, exuberantemente bela, majestática, macua, universal e livre, do meu país.