O País – A verdade como notícia

Comités de Paz e Reconciliação Nacional: um imperativo para reencontrarmos a sociedade

Entre Outubro de 2024 e Fevereiro de 2025, Moçambique viveu um dos períodos mais sombrios da sua convivência social recente. As imagens, os relatos e as memórias desse tempo permanecem vivas na nossa consciência colectiva. O que se viu não foi apenas conflito político: foi a normalização da violência, do saque, da destruição do bem comum e do desrespeito aberto pela autoridade e pelas regras mínimas de convivência.

Se Thomas Hobbes tivesse sido testemunha daquele período, dificilmente encontraria uma metáfora mais adequada do que aquela que formulou séculos atrás: o estado de natureza, onde a vida social se dissolve e o homem se transforma no lobo do próprio homem. O que mais inquieta não é apenas o que aconteceu, mas o que ficou depois. Desde então, comportamentos que deveriam ser considerados anormais — vandalizar, whelar, destruir, afrontar instituições — passaram a ser vistos como banais, enquanto o respeito pela lei, pela ordem e pelo outro passou a ser tratado quase como ingenuidade.

Este é um sinal claro de anomia social. A nossa sociedade encontra-se ferida, fragmentada, emocionalmente exausta e politicamente polarizada. E sociedades assim não se curam apenas com decretos, discursos oficiais ou reformas administrativas. Curam-se quando param, reflectem, reconhecem os seus erros e criam espaços reais de reencontro.

É neste contexto que se torna urgente propor um movimento nacional de criação e instalação de Comités de Paz e Reconciliação Nacional ao nível dos bairros.

Não se trata de estruturas partidárias, nem de instrumentos de controlo social. Trata-se de espaços comunitários de diálogo, escuta, mediação e reconstrução da confiança. Espaços onde cidadãos comuns — líderes comunitários, jovens, mulheres, anciãos, líderes religiosos, representantes locais — possam sentar-se, falar sobre o que aconteceu, reconhecer dores, assumir responsabilidades e reconstruir laços.

As nossas diferenças políticas são legítimas. O pluralismo é saudável. Mas quando essas diferenças passam a destruir o tecido social, a corroer a confiança entre vizinhos e a normalizar a violência, deixam de ser divergências políticas e passam a ser um problema civilizacional. Nenhuma sociedade sobrevive quando deixa de se reconhecer como comunidade.

Os Comités de Paz e Reconciliação podem cumprir vários papéis fundamentais:

  • Ajudar a descomprimir tensões locais ainda latentes;
  • Criar mecanismos de mediação comunitária de conflitos;
  • Reforçar valores de convivência, respeito e responsabilidade colectiva;
  • Reabilitar a ideia de que o bem público pertence a todos;
  • Contribuir para a refundação moral da sociedade, a partir da base.

Mais do que isso, estes comités podem tornar-se uma plataforma estratégica para consolidar o novo ciclo de governação e as reformas em curso. Reformas sustentáveis não se impõem apenas de cima para baixo. Precisam de uma sociedade envolvida, consciente e reconciliada consigo mesma. Quando o pilar das reformas é a sociedade, criam-se também condições para que as próprias reformas no seio dos partidos políticos aconteçam, pressionadas por uma cidadania mais madura, vigilante e exigente.

A paz não é apenas ausência de conflito. É presença de diálogo, de justiça social, de reconhecimento mútuo e de esperança partilhada. Sem isso, qualquer estabilidade será apenas aparente e temporária.

Está na hora de pararmos. De reconhecermos que nos ferimos uns aos outros. De aceitarmos que precisamos exorcizar as nossas diferenças de forma construtiva. De nos encontrarmos novamente como sociedade.

Os Comités de Paz e Reconciliação Nacional nos bairros não são uma solução mágica. Mas podem ser o primeiro passo sério para curar uma sociedade que ainda sangra em silêncio.

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos