Diz um célebre provérbio africano o seguinte: “A árvore do baobá começa com uma semente pequena”.Oriunda de família com grandes limitações financeiras, chega hoje aos seus 53 anos a maior campeã moçambicana de todos os tempos: Maria de Lurdes Mutola. De carácter comedido, parca em palavras, mas sempre mulher de acção, ela encarna com perfeição a essência escorpiana, reconhecida pela intensidade, sensibilidade, coragem e uma personalidade magnética e enigmática.
Lurdes Mutola é o baobá das nossas lides desportivas. E será sempre essa síntese de força interior e reserva emocional, que expressa, com discrição, o muito que almeja realizar pelos jovens deste país. Tem a consciência exacta do esforço e da dedicação que a vida exige, porque nada lhe foi oferecido de bandeja. Respeita profundamente todos aqueles que dão o seu melhor para erguer ou reerguer este Moçambique que ainda busca, de tudo um pouco, para o bem do seu povo, nem sempre com o êxito desejado.
Com tudo o que conquistou, à custa de enorme sacrifício, ela partilha, como todos nós, as disfuncionalidades do país, os desequilíbrios, as máculas, os entraves e as suas aporias. Tive a oportunidade de privar com ela e conversar longamente na sua última homenagem pública. Avessa aos holofotes, notei o quanto viajava absorta em pensamentos, cautelosa perante as surpresas, mas convicta de que vale a pena apostar no desporto, resgatar as velhas glórias e criar incentivos capazes de inspirar milhares de jovens talentosos, tantas vezes privados de oportunidades. Convenhamos, foi um momento de conversa franca e desarmada, repleto de aprendizagens.
Lurdes Mutola, a nossa Menina de Ouro, correu como quem carrega o sonho de um povo inteiro. Veio do Chamanculo, essa periferia de poetas, boxeadores, músicos e sonhadores, e transformou as suas passadas em páginas eternas da história do atletismo mundial. Foi pela mão de José Craveirinha, o maior poeta da nação, e do seu filho Stélio, que ela encontrou motivação para se desligar do futebol de campo e fazer uma viragem, não providencial, mas oportuna, rumo ao atletismo. Pai e filho, perspicazes, viram nela o diamante ainda por lapidar.
E o mundo testemunhou esse brilho ao longo de anos que a história jamais apagará das suas páginas mais douradas: ouro em Stuttgart (1993), ouro em Edmonton (2001), ouro em Paris (2003); prata em Sevilha (1999), bronze em Atenas (2006). Ouro em Toronto (1993), Barcelona (1995), Paris (1997), Lisboa (2001), Birmingham (2003), Budapeste (2004) e Moscovo (2006); prata em Maebashi, bronze em Valência (2008). Na Commonwealth, ouro em Kuala Lumpur (1998), ouro em Manchester (2002), bronze em Melbourne (2006).
E, no apogeu da glória, em Sydney, a 25 de Setembro de 2000, a bandeira de Moçambique subiu ao seu ponto mais alto. Depois de Samora Machel, nunca o país havia sido tão bem referenciado por cidadãos anónimos de tantos países. O hino nacional ecoou. Com ele, o coração de um país bateu no mesmo compasso dos seus 800 metros de coragem. Lurdes Mutola tornou-se imortal naquele instante. Não apenas por vencer, mas, sobretudo, por provar que a grandeza pode nascer do chão vermelho do Chamanculo e alcançar as luzes do mundo.
Todavia, vinte e cinco anos depois, a medalha de ouro parece mais reluzente do que o reconhecimento que lhe devíamos. Moçambique ainda não lhe ergueu uma estátua e nem criou uma estrutura dinâmica para colher os frutos da sua enorme e inquestionável façanha. Estruturalmente, o país poderia ter capitalizado essa conquista, promovendo o atletismo como modalidade de eleição, com as escolas a adoptá-lo como disciplina obrigatória nos jogos locais e escolares, e com programas de bolsas de estudo voltados à formação de novos talentos.
Estrategicamente, Lurdes e toda a sua equipa estariam preparados para orientar e proporcionar as condições materiais necessárias para tal empreendimento. Assim tem acontecido, por exemplo, no Quénia, na Etiópia e noutros países, que chegam a instituir dias nacionais dedicados ao atletismo, momentos em que o país pára e vai para as ruas correr, assistir e celebrar o talento dos seus melhores atletas.
Um dos incentivos poderia, possivelmente, começar pela designação de um estádio com o seu nome, permitindo-lhe congregar investimentos e gerir técnicos, olheiros e promessas do desporto. Esse espaço seria um estádio de referência, para onde convergiriam as principais provas nacionais e regionais. Um olhar sobre a Jamaica demonstra bem como as suas maiores estrelas sustentam o desenvolvimento do atletismo no país: os seus nomes estão gravados em infra-estruturas icónicas, e os jovens crescem desejando alcançar os mesmos patamares de glória.
No contexto moçambicano, concordamos todos que pouco tem sido feito para transformar a carreira e a história de Lurdes Mutola num verdadeiro manual de inspiração para os jovens. A nossa Menina de Ouro já tem, é certo, o seu nome em algumas ruas de bairros; recebeu doutoramentos honoris causa pela Universidade Pedagógica de Maputo e pela Universidade Eduardo Mondlane. Tem sido homenageada esporadicamente. Mas falta-lhe ainda, sobretudo, a eternidade que os povos sábios concedem aos seus heróis.
Ela, que treinou na longínqua Oregon, nos Estados Unidos, na cidade de Eugene, e conquistou o mundo vivendo e estudando longe da pátria, regressou para criar a Fundação Lurdes Mutola, um símbolo de esperança e de novas sementes. Hoje, advoga pela criação de um Centro de Alto Rendimento, um sonho audacioso e dispendioso, mas absolutamente necessário, porque as grandes nações investem no talento antes que o talento lhes fuja.
Em algumas das suas aparições públicas, recordo-me de algo que ela disse, palavras que importa preservar:
“Quando subi ao pódio olímpico, não era apenas eu que vencia. Era cada menina e cada rapaz que acreditou que o sonho é possível, mesmo quando o caminho parece impossível”.
Essas palavras deveriam ecoar em cada escola, em cada pista e em cada aldeia onde o desporto é ainda um improviso de esperança. É dessa motivação que ainda carecemos, aquela que poderia fazer grande diferença em todos nós, na reorganização dos nossos objectivos e nas reflexões sobre os caminhos do desporto em Moçambique. Afinal, depois da Lurdes, quase contemporânea, surgiu outra atleta, a Argentina da Glória. Teve marcas importantes e alguma participação em Jogos Olímpicos, mas, certamente, Moçambique não voltou a saborear o pódio africano ou olímpico.
O atletismo moçambicano vive hoje uma sombra inquietante de si mesmo. A chama inspirada por Lurdes Mutola parece ofuscada, e os trilhos desse desporto mostraram-se extraviados em direcções pouco transparentes. Apesar de declarações de boas intenções, a prática de preparar atletas competitivos parece paralisada, sem visibilidade clara de caminho ou de resultados capazes de emular os dias de glória do passado.
As instituições que deveriam liderar esse processo parecem atoladas em processos operacionais e pouco focadas em estratégias estruturais de longo prazo. Por exemplo, quase nada se ouve falar dos campeonatos nacionais e/ou provinciais, certamente muito longe da celebração da excelência atlética. Infelizmente, o atletismo nacional aguarda que a poeira do esquecimento se dissipe, e que se reencontre rumo, liderança e transparência, sem os quais os talentos continuam adormecidos e o país, mais uma vez, perde-se no lodo da mediocridade.
Há memórias que não se apagam. Enquanto o mundo celebra a Lurdes Mutola em Oregon, e enquanto as pistas de Joanesburgo recordam que foi ela quem treinou a lendária Caster Semenya, Moçambique deve-lhe mais do que aplausos. Deve-lhe continuidade. Nas pequenas passadas que os nossos jovens hoje correm, há um eco distante da Menina de Ouro. Cabe-nos fazer com que esse eco se transforme em voz, em programa, em política pública, em centro de formação. Porque os países que não celebram os seus campeões não correm, caminham em círculos.
Como é possível que um país que teve em Lurdes Mutola não apenas uma campeã, mas uma mentora comprovada, capaz de treinar atletas do calibre de Caster Semenya, tenha simplesmente desperdiçado este capital humano inestimável? A resposta, tão dolorosa quanto evidente, parece encontrar eco na incompreensível letargia das nossas autoridades desportivas.
Afinal, o atletismo moçambicano não definha por falta de talento. Definha porque as estruturas que deveriam sustentá-lo são fantasmas burocráticos, onde a inércia se disfarça de formalidade, e onde muitas vezes faltam visão e estratégia para conduzir o desporto ao patamar que merece. Enquanto o Quénia e a Etiópia constroem centros de alto rendimento e sistemas de detecção de talentos nas aldeias mais remotas, Moçambique nem sequer consegue manter as poucas pistas de atletismo que existem em condições mínimas de funcionamento.
A Fundação Lurdes Mutola existe, mas sobrevive à margem do apoio estatal consistente. O Centro de Alto Rendimento que ela propõe continua no reino das promessas vazias. Temos uma das maiores treinadoras do continente a implorar por condições básicas, e as autoridades respondem com homenagens protocolares e discursos empoeirados que não constroem pistas, não formam treinadores, e não criam bolsas de estudo.
A verdade, nua e crua, atesta que as nossas autoridades desportivas falharam redondamente. Falharam ao não transformar o sucesso da Lurdes Mutola numa plataforma de lançamento para gerações futuras. Falharam ao não instituir programas sistemáticos de formação de técnicos especializados. Falharam ao não investir em infra-estruturas desportivas dignas. Falharam ao permitir que o atletismo escolar se tornasse uma anedota, praticado em campos improvisados de terra batida, sem cronometragem adequada, sem acompanhamento médico e sem nutrição desportiva.
Vinte e cinco anos depois da medalha de ouro olímpica, o atletismo moçambicano é um deserto de realizações porque os responsáveis preferiram a inércia confortável à ousadia necessária. Preferiram gerir a mediocridade a construir a excelência. Enquanto isso, Lurdes Mutola, que poderia estar a liderar uma academia nacional de atletismo, a formar treinadores, a descobrir e a lapidar novos diamantes do Chamanculo e de todo o país, vê o seu legado minguar por falta de visão daqueles que têm o poder de decisão.
É uma vergonha nacional que uma campeã desta dimensão não tenha sido aproveitada como recurso estratégico. É um escândalo que o seu conhecimento, a sua rede de contactos internacionais e a sua capacidade comprovada de formar campeões mundiais não tenham sido mobilizados de forma estruturada e ambiciosa. Não obstante, o fracasso não é de Lurdes Mutola. O fracasso é nosso, de forma colectiva: das instituições que dormem enquanto o talento se desperdiça, dos dirigentes que confundem cargos com competência, e dos orçamentos desportivos que são insultos disfarçados de investimento.
Muitos parabéns, Maria de Lurdes Mutola! Hoje, 27 de Outubro, no seu aniversário natalício, o país inteiro deveria parar por um instante e, de coração em punho, dizer: “Obrigado, Lurdes Mutola, por nos teres ensinado a correr com o coração e a vencer com a alma”. Mas deveria também, com igual fervor, exigir das autoridades que a tua grandeza não seja desperdiçada, que o teu legado seja convertido em acção, e que a tua presença entre nós se torne o alicerce de um atletismo moçambicano renascido das cinzas. Afinal, o baobá que começou como semente pequena no Chamanculo cresceu e deu sombra ao mundo inteiro. Cabe-nos agora plantar novas sementes sob a sua copa, antes que a floresta se transforme em irremediável deserto.(X)
