O que uma sociedade em plena transformação pede
aos seus intelectuais são doutrinas estáveis,
onde os enigmas encontrem solução,
e o sofrimento, consolação.
(Domenach)
Principio o presente ensaio com um apelo à consolação do sofrimento, porquanto que, Roberto Chitsondzo (doravante RC), neste trabalho musical, se serve da precariedade das condições, sejam elas económicas, políticas e/ou sociais como também ideológicas (de Moçambique) para, apesar (ou por causa?) disso, incentivar as pessoas a estudarem, representando, assim, a dialéctica entre a utopia e a distopia na sua música.
Vale lembrar que Chitsondzo, autor de “Vana va ndota”, “Buluku”, “Sathani”, “Sathuma n’mwhani”, “Matarlatã”, “Dondza” (música em pauta neste ensaio) entre outras faixas musicais retrata, nos seus trabalhos musicais, as desigualdades sociais e/ou o realismo social moçambicano.
Ora, antes de demonstrar até que ponto “Dondza”, de RC, contempla o utópico e o distópico nas entrelinhas, importa, portanto, situar o prezado leitor sobre estes conceitos. Noa (1998:66) afirma categoricamente que, “enquanto a utopia aponta para uma saída através de uma idealização, a distopia desenha uma não-saída ou uma saída ainda mais catastrófica. Isto é, se por um lado temos o sonho, por outro, temos o pesadelo.” (destaque nosso)
Ora, logo no princípio da música, o sujeito poético preocupa-se em recomendar que se estude, procurando, desta forma, sobrevalorar os estudos, pelo que se pode ouvir, quando entoa: “Dondza, dondza, wena (…)/ dondza (…)” (RC, s/d), traduzindo [‘Estude(a), estude(a)!, você (…)/ estude(a)!’].
Na continuidade, para transmitir a ideia segundo a qual independentemente da idade, sexo, estatuto social, se houver oportunidade para tal, que se estude, assevera: [‘mesmo que seja(s) mãe, pai,/ jovem/rapaz, rapariga,/ criança, adulto(a)/, ei, estude(a)! (…)’], quando entoa: “kumbe u mamana, kumbe u b’ava,/ kumbe u jaha, kumbe u ntombi,/ kumbe u n’wanana, kumbe u nkulu (mukulu),/ wena, heyi, dondza (…)” (RC, s/d)
Todavia, porque de todas as classes retro mencionadas a mais vulnerável, senão prioritária, é a infantil, o sujeito poético emudece-se e dá-se-lhe espaço, pelo que redargue poeticamente: “Fazer da escola o jardim, cada criança uma flor que nunca murcha (…)” (RC, s/d), como que em cobrança de cuidado, de tomada de atenção redobrada por parte dos seus ascendentes.
Estamos perante aquilo que Noa (1998:66) considera utopia, pois que aponta para uma saída através de uma idealização (no caso concreto, os estudos). Aliás, para este autor, “as utopias significam o lado solar, emocional, optimista e crédulo da natureza humana, enquanto que [sic] a distopia representa o lado lunar, cerebral, pessimista e céptico.”
Na sequência, o sujeito poético, como que em encaixe à utopia retro explicitada, parte à exploração do distópico, quando entoa: “Van’wani vapfumala xikola (…)/ vateacher (…)/ mabuku (…)/ vapsvele (…)/ kuhleka (…)/ kutsaka (…)” (RC, s/d), traduzindo: [‘Aos outros falta-lhes escola (…)/ professores (…)/ livros (…)/ pais (…)/ sorriso (…)/ alegria (…)’], e o refrão riposta, no fim de cada aspecto ora em falta e aludido pelo sujeito poético, “dondza…”, como quem diz: apesar disso tudo faltar, ‘estude(a)!’
Estamos, portanto, perante clara exploração do distópico, ou seja, conforme Noa (1998) assevera, perante o desenho de uma não-saída ou uma saída ainda mais catastrófica. Dito de outro modo, se por um lado temos o sonho (a utopia neste caso), por outro, temos o pesadelo (a distopia).
Ou seja, apesar de o sujeito poético servir-se da expressão “van’wani”, que significa “outro(s)”, remetendo-nos, assim, à ideia de alteridade, quando diz “Van’wani vapfumala xikola (…)” (RC, s/d), entendemo-lo em duas perspectivas: por um lado, como quem, de facto, quer convidar as pessoas a valorizarem as poucas oportunidades existentes, já que os outros não têm nem o básico (escola, professores, livros, pais, sorriso, alegria), por outro lado, como se estivéssemos frente a uma falsa alteridade, servindo-se da liberdade poética que lhe é conferida pela arte para questionar: mas como estudar sem escola, professores, livros, pais, sorriso e, consequentemente, sem alegria?
Razão pela qual Noa (1998), explicitando as aproximações e distanciamentos entre a utopia e distopia assevera: “Finalmente, se a realidade violenta a utopia, a distopia tende a violentar a própria realidade, afrontando-a e deformando-a”.
Na estrofe seguinte, o sujeito poético, para frisar o que falta aos “outros” que, conforme explicitei anteriormente, não são, quiçá, “outros”, mas, sim, as mesmas crianças que se lhes é dado espaço na música, repete a sequência, porém de forma cruzada e diferente da no princípio da música trazida: “xikola” (escola), “mabuku” (livros), vathicha (professores), “kuhleka” (sorriso), “vapsvele” (pais) e, por fim, incorpora um léxico novo na letra da música (talvez que traduza a súmula): HINKWASVO (TUDO), pelo que fica a questão: como uma criança poderá ir à escola faltando-lhe TUDO?!
Ora, como que em prova de que já não é sobre mãe, pai, jovem/rapaz, rapariga e adulto(a), mas, sim, criança, em meio a isto, na sequência, o sujeito poético volta a convidar a emprestada voz poética e infantil DAS CRIANÇAS, que frisam:
“Fazer da escola o jardim, cada criança uma flor que nunca murcha” (RC, s/d), repisando o sujeito poético compassada e seguidamente: “Unga rereki (…) phakama (…) dondza, n’wananga (…)” (RC, s/d), que significa ‘Não recue(s) (…) persista(e) (…) estude(a), minha/meu filha(o) (…)’
Não estaria, o sujeito poético, a representar uma dada época do contexto moçambicano? Será o passado? Presente? Ou ambos? Ou, então, o por vir? Também nos indagámos. Mas, de uma coisa estamos certos: “ao conseguir referir-se a uma realidade indefinida (fenómenos filosóficos, sociais, políticos, religiosos, etc.) a arte – mais que qualquer outro fenómeno social – consegue caracterizar e representar uma época dada.” (Mukarowski, 1981)
À guisa de conclusão
Portanto,“Dondza” denuncia a precariedade das condições económicas, políticas, sociais e/ou ideológicas (de Moçambique?), para, apesar (ou por causa) disso, incentivar os que têm (mínimas) condições para estudar a fazê-lo e, estes “outros”, apesar de o sujeito poético servir-se da expressão “van’wani”, que significa “outros”, entendemo-lo em duas perspectivas: por um lado, como se de “outros” propriamente ditos se tratassem, já que outros “outros” não têm nem o básico (escola, professores, livros…), por outro lado, como se estivéssemos frente a uma falsa alteridade, ou seja, os “outros” fossem as próprias crianças que se lhes é dado espaço na música para clamar por cuidado, por se tratarem das flores que nunca murcham e (por que não) a ceiva do amanhã (?)
BIBLIOGRAFIA
ACTIVA
- RC. (s/d). “Dondza”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBREFbnTw1
PASSIVA
- DOMENACH, J. (1968). Le Retour du Tragique; ed. Ut.: O Retorno do Trágico, Lisboa: Moraes Ed.
- NOA, F. (1998). A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária – UEM.
- MUKAROWSKI, J. (1981). Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa.