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Uma Conversa Harmónica com os Golfinhos

(para Maureen, Laércia, Esperança e Jenny)

 

Dizem que os oceanos guardam segredos profundos. Mas, para quem se chama Maureen, Laércia, Esperança e Jenny, o mar, um dia, resolveu falar. Falou em forma de golfinhos que sorriem, de cardumes que aplaudem, de corais que se vestem de festa quando estas jovens mergulham de cilindro ao ombro, coragem no peito e um brilho no olhar.

Tudo começou em 2020, quando investigadores da Suécia, do Rio de Janeiro, da UP-Maputo, da WIORI e da Natura, ousaram sonhar juntos. Sonhar uma expedição ao longo dos mais de 2700 km da costa moçambicana, uma travessia por águas encantadas, ecossistemas raros, espécies únicas e silêncios cheios de energia por revelar. Uma costa e várias marés de histórias, matrizes culturais, sangues de outras latitudes geográficas e sonoridades dos tempos amenos e assombrosos.

Do sonho à acção, foi preciso mais do que ciência: foi preciso fé. A execução ficou nas mãos dos próprios mergulhadores, com o apoio generoso de quem acreditou. A viagem teve início no Cabo de São Sebastião, em Vilankulo, e seguiu rumo às Ilhas Primeiras e Segundas, nomes de um legado que nem as revoluções conseguiram apagar. Pedaços de paraíso ainda intactos, santuários entre a Zambézia e Nampula, onde as águas e as ilhas ainda se abraçam com ternura. Um abraço afectuoso, feito de cumplicidades.

Mais do que explorar, queriam escutar. Mais do que relatar, queriam compreender. E, assim, nasceu a missão de documentar a biodiversidade marinha, propor caminhos de protecção, traduzir o sussurro dos recifes em linguagem humana.

No Arquipélago das Primeiras e Segundas, os recifes ainda respiram. Os locais dizem que as ondas trazem almas antigas de volta à terra. Quando o mar se enfurece, são os antepassados a reclamar. Quando sossega, reina a paz profunda, bonançosa, a mesma que une gente, peixe, areia e canto de pássaros.

Esse mundo não é apenas belo. É sagrado. Inviolável. Consagrado e venerável. E é ele que pergunta, silenciosamente: “Quando vamos conversar, a sério, sobre os limites do nosso poder sobre a natureza?”

Talvez por isso, o mundo assinale, a 1 de Agosto, o Dia das Áreas Marinhas Protegidas, não como mera efeméride, mas como um apelo à consciência. Uma chamada à acção em defesa dos oceanos, da vida que neles habita e das comunidades que com eles coexistem. Celebrar esse dia é reconhecer que proteger essas áreas é cuidar do planeta, do futuro e de nós mesmos. Lugares como os que Maureen, Laércia, Esperança e Jenny visitaram, santuários vivos, onde ciência e reverência se abraçam.

Enquanto barcos partiam, artigos se escreviam e relatórios iam sendo trocados, surgiu uma ideia: preparar novas mergulhadoras, formar gente capaz de escutar o fundo dos mares, esse leito oceânico tão antigo quanto vivo. Vieram os cursos, os treinos, os dilemas de quem ficou de fora e merecia estar dentro. As famílias juntaram-se. Investiram o mínimo ou tudo. Choraram convulsivamente, lamentaram-se copiosamente. Desesperaram. Mas nunca perderam a fé.

Meses depois, o Centro de Mergulho de Maputo confirmou-as como aptas e certificadas. Dezenas de testes colocaram-nas ao nível de qualquer outra mergulhadora de muitos pergaminhos. Estavam amadurecidas para iniciar descobertas e desbravar novos horizontes. Outros mares e maravilhas. O mar, esse indomável, aguardava então pelas mergulhadoras e por centenas de conversas com os golfinhos. Regozijávamo-nos por uma nova página, um novo manual que o tempo haveria de elaborar. A reconfiguração de cursos outrora restritos, que agora se massificavam e chegavam à periferia.

Maureen, Laércia, Esperança e Jenny aceitaram o desafio de traduzir o silêncio. De conversar com o mar por outros meios, através do corpo, do fôlego, do espanto. Foram ali onde o azul se faz escuro, onde as bolhas são palavras e os peixes dançam notícias antigas.

Essas mulheres não foram, apenas, contar peixes e corais; foram procurar histórias. Histórias afogadas, caladas, esquecidas. Foram devolver alma à quem ficou sem alma e nem esperança. E o mar, sensível e antigo, respondeu.

Contam que, enquanto Maureen observava peixes recifais, um grupo de golfinhos se aproximou. Vieram com a doçura de quem reconhece uma amiga distante. E ali, a metros da superfície, trocaram confidências, confabulâncias, talvez,  até um pacto de paz entre terra e água. Assinaram um pouco mais que acordos das COPs, sem gravatas e nem refeições de luxo. Como faz falta essa paz ao povo moçambicano.

É bonito imaginar a cena. Um filme que nenhum guião poderia prever.  Maureen sob as águas, a guardar segredos nos olhos, e os golfinhos a cochichar histórias como quem diz: “Obrigado por terem vindo e com ouvidos para escutar. Obrigado por olharem para nós com olhos de ciência e coração de criança.”

Laércia, Esperança e Jenny não ficaram atrás. Cada uma, com seu jeito, foi escrevendo as primeiras linhas de uma história que já tardava em ser contada. Elas mostraram que não se faz ciência só com livros e laboratórios, mas, também, com sal na pele, frio nos ossos e um sorriso escondido atrás do regulador.

É por isso que escrevo estas linhas com orgulho e um riso leve no canto da pena. Porque estas mulheres arrancaram aplausos até dos golfinhos, e eles, acreditem,  não aplaudem por qualquer coisa, nem por qualquer pessoa. Elas mostraram que a costa moçambicana não é apenas um postal, mas um laboratório vivo, um altar de beleza e conhecimento, onde ciência e encantamento se dão as mãos.

Obrigado, Maureen, Laércia, Esperança e Jenny. Obrigado por provarem que o futuro da ciência moçambicana pode ser feito de cilindros de coragem, de curiosidade e ternura.

O oceano já sabe quem vocês são; e nós também. A grandeza do espírito não reside nos títulos, posses ou aplausos. Ela se revela nos pequenos gestos, nos detalhes do cotidiano, na forma como tratamos quem nada pode nos oferecer. Reside na capacidade de inovar e fazer o impossível pela natureza.

Continuem a conversar com os golfinhos por nós e libertem as nossas almas e ondas.

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