“Mati”, de Selma Uamusse, é o ponto de partida para o que consideranos canto de sereia. A voz da cantora moçambicana é um convite ao ênfase sensorial. Na música, o som da água ao fundo é um espectáculo que nos permite, ainda que de olhos fechados, contemplar o fluxo de emoções que se vai intensificando conjuntamente com o timbre da cantora.
“Mati”, do ronga/changana, significa água em português. Assim, a música de Selma Uamusse trata da água, mas não apenas como elemento da natureza. Também trata da água que mexe com o eu-lírico, a água como bênção capaz de curar.
A composição mistura o ronga/changana e o inglês, o que constitui uma combinação fascinante, principalmente no trecho “You’re Mati/ Mati for my mind/ Healing Mati/ Mati for my soul”.
Nas passagens acima, as línguas parecem ser uma só, abrindo portas para uma óbvia reflexão: A água é água em qualquer canto do mundo, o que nos leva a pensar: como todos encaramos o líquido?
A composição de “Mati” é cíclica, sendo feita de repetições melódicas. Assim como os três estados da água: líquido, sólido e gasoso, que se vão alterando consoante a mudança de temperatura.
O eu-lírico relaciona a água ao amor. Nesse exercício, a água é alimento, cura, economia e respiração. Percebe-se, assim, o uso da personificação, por se emprestarem acções humanas a seres, definitivamente, inanimados. Contudo, entende-se a mensagem a passar: o uso racional da água, que, nesse caso, estará “viva” e em óptimas condições de curar enquanto for economizada, um auxílio importante para o ecossistema, evidenciado no trecho “Healing water/ Saving water/ Feeding water/ Changing water”.
A mensagem acima, portanto, passada com tamanha sutileza, é um mérito indiscutível do(a) compositor(a).
Ao contrário de “Mati”, de Selma Uamusse, o conto “Nuvem de espuma”, de Bento Baloi apresenta a água como calamidade. É por causa da água que Nyaswa perde tudo o que tem. O conto começa de forma inquietante: “A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares, sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila”.
A referência à chegada da água, juntamente com os mochos, é aterrorizante, é a certeza de que mortes virão e de que legados serão encerrados.
O Rio Búzi é descrito como um corpo vivo, revoltado, que se recusa a obedecer às margens, como se a natureza, cansada de contenção, se insurgisse contra o Homem e as suas frágeis estruturas.
A imagem da água que “borbulha por aqui e por ali”, transmite uma sensação de caos crescente, de desordem que escapa ao controle humano.
Enquanto “Mati” evoca a água como sopro divino, bênção que cura e renova, “Nuvem de Espuma” a apresenta como entidade vingativa, destruidora de vidas, famílias e memórias.
Nyaswa, protagonista do conto de Bento Baloi, vê-se diante de um luto que não é apenas pessoal, mas colectivo: o luto por uma terra afogada, por tradições soterradas na lama, por histórias interrompidas pela correnteza.
Ambas as obras, apesar dos seus contrastes, convergem num ponto essencial: a água nunca é neutra. É agente da transformação. Tanto no respiro suave da canção de Selma Uamusse quanto na inundação brutal narrada por Bento Baloi, a água atua como força que exige resposta, como presença que nos obriga a reflectir sobre o equilíbrio entre o cuidado e a negligência, entre o respeito e o abuso.
Há também uma camada simbólica comum entre as duas obras: a água como expressão da mulher africana.
Em “Mati”, a água é vida e voz: canta, cura e conduz. Em “Nuvem de Espuma”, a água é dor e perda: carrega a morte do filho de Nyaswa, imagem pungente de um útero que, em vez de gerar, desaba. O feminino é, assim, atravessado pela contradição da água: fértil e feroz, suave e avassalador.
Tanto “Mati” quanto “Nuvem de Espuma” elucidam a duplicidade da vida. Costumamos exaltar a água como fonte de vida, esquecendo-nos da sua força destruidora e imprevisível. Em “Mati”, essa imprevisibilidade abençoa e faz nascer a esperança. Já em “Nuvem de Espuma”, a água amaldiçoa e afoga qualquer possibilidade de esperança . A esperança de Nyaswa, como de tantas mães, neste mundo, reside no seu filho, e é exactamente essa esperança que se perde nas águas do Búzi.
É esse dualismo que torna a leitura das duas obras tão complementar. Uma não nega a outra. Juntas, as obras revelam que a natureza, assim como o ser humano, não se resume a uma só face. Portanto, é preciso saber ouvir tanto o canto da sereia quanto o sussurro dos mochos, porque, no fim, ambos anunciam aquilo que a água sempre soube: que toda vida, para existir, precisa saber dançar entre o fluxo e a fúria.
26 de julho de 2025.
Nota do editor: Texto resultado das actividades na oficina de escrita sobre crítica de arte, na Fundação Fernando Leite Couto.