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A Estética da Reclusão: Uma Leitura Simbólica do Isolamento Emocional

A exposição individual “sussurros do tempo: lendas e mitos”, do artista moçambicano Bruno Chichava, apresentada na Fundação Fernando Couto, em Maputo, é uma experiência sensorial e poética que mergulha profundamente nas camadas da identidade feminina.

Com um olhar íntimo e simbólico, Chichava constrói um corpo de obras que desafia a linearidade do tempo, explorando a ancestralidade, a memória e a corporeidade como forças indissociáveis da experiência da mulher.

Visualmente, sussurros do tempo se destaca pela diversidade de ações que evocam o cotidiano feminino sem nunca se prender ao óbvio. Há uma paleta terrosa e orgânica que percorre toda a exposição tons que remetem à pele, ao barro, ao sangue e à natureza criando uma atmosfera cálida, visceral e acolhedora, como um ventre.

A presença do corpo, sugerida ou explicitada, é constante, seja por contornos sutis, silhuetas fragmentadas ou marcas impressas como vestígios de presenças ancestrais. Chichava utiliza o corpo não apenas como tema, mas como meio, em algumas obras, é possível sentir a fisicalidade da criação, como se o artista tivesse bordado, desenhado ou pintado com a própria carne.

A exposição não segue uma linearidade rígida, e isso é parte de sua força. Em vez de uma narrativa fechada, Sussurros propõe um percurso sensorial, onde cada obra funciona como um portal de memória coletiva e pessoal. Há uma tensão entre o íntimo e o universal, entre o silêncio e o grito e é nesse espaço liminar que a exposição mais pulsa.

Sussurros é uma exposição potente e sensível, que propõe uma escuta ativa do feminino em suas múltiplas camadas. Chichava reafirma-se como um artista de discurso maduro, capaz de unir a crítica social da arte com a delicadeza de uma poética visual refinada. A Fundação Fernando Couto acerta ao abrir espaço para uma produção que, ao mesmo tempo, confronta e acolhe como o próprio feminino.

A exposição não apenas celebra a mulher, o passado, a preservação da identidade, mas, também, propõe uma imersão em sua complexidade, com lirismo e coragem.

Uma exposição que ecoa dentro do visitante mesmo após a saída da galeria. Em “ Mulher Asfalto”, um dos temas retratados na exposição, a técnica mista combina linhas expressivas a tinta preta com lavagens aquareladas em tons sépia e castanho. Este contraste entre o traço duro e o fundo fluido evoca a tensão entre o interior psicológico e o ambiente externo.

O uso de traços soltos e instáveis sublinha o caos emocional. A paleta de cores reduzida intensifica a sensação de abandono ou melancolia. A figura humana é desenhada com uma anatomia intencionalmente deformada sugerindo mais expressão emocional do que realismo físico. Este tipo de composição aproxima-se do expressionismo figurativo contemporâneo, onde a forma é distorcida ao serviço do conteúdo emocional.

A centralidade da figura humana isolada sugere que esta é uma obra sobre a condição humana, mais especificamente: sugere angústia existencial; sofrimento psicológico e enclausuramento interno.

Teias de aranha ao redor do corpo indicam que a figura está presa no tempo ou numa memória paralisante. Já as linhas que explodem em todas as direções representam uma ruptura interna ou com o mundo exterior.

O corpo nu, fechado sobre si mesmo, não indica erotismo, mas sim fragilidade, defesa e até vergonha. As criaturas laterais, semelhantes a répteis ou escorpiões, intensificam o ambiente de ameaça, seja ela real ou simbólica.

A obra pode ser lida como uma metáfora visual do estado de confinamento emocional vivido por muitos indivíduos no mundo moderno presos entre o peso do passado, os medos interiores e uma sensação de impotência.

É também um comentário sobre o isolamento, quer seja físico ou mental. A ausência de qualquer outro elemento humano no cenário reforça a solidão da figura, como se estivesse num “não-lugar” psicológico, entre o colapso e a libertação.

Esta é uma peça forte, visualmente impactante, que transmite uma narrativa sem palavras, feita de dor, tensão e introspeção. A escolha estética de misturar o caos visual com uma pose retraída cria uma dualidade poderosa, o mundo interno em turbulência versus o corpo em defesa.

A obra é uma declaração silenciosa, mas intensa, sobre a fragilidade humana e sobre a complexidade emocional que muitas vezes carregamos sem mostrar.

 

Título: Mulher Asfalto, aguarela e tinta-da-china s/ papel, 41×55 cm, 2016
Artista: Bruno Chichava
Curadoria: Yolanda Couto
Fotografia: Sheiza Nhachengo

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