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Campo de areia de Leo Cote: Entre o carácter fugidio e jogo da redundância

Um dos problemas com o qual me deparei, quando me foi colocado o desafio de apresentar o livro de Leo Cote, foi naturalmente o título: “Campo de Areia”. Um título que, sob muitos aspectos, encerra, à primeira vista, uma flagrante redundância, qualquer coisa de óbvio e de absurdo. Porque, em princípio, como se caracterizaria a priori um campo? Ou seja, qual seria a primeira condição necessária e indispensável de um campo, a partir da qual todas as outras condições seriam acidentais, prescindíveis em comparação com tal condição?
Contudo, a redundância ganha um outro sentido, quando nos compenetramos mais profundamente na análise da problemática que o título suscita, as possíveis sugestões que ele nos fornece, bem como no conteúdo que ele representa e à luz daquelas que tem sido as grandes discussões polares, eternas e estruturantes em torno da relação entre a Literatura e a sociedade, ou, se quisermos falar em termos gerais, quando nos envolvemos na análise da correlação entre a obra de arte enquanto dimensão de transcendência, isto é, desligada, só para nos expressarmos em termos kantianos, do concurso da experiência, desligada das preocupações dos homens, ao mesmo tempo que precisa de se traduzir de uma forma que seja comunicável aos homens, muito justamente porque é por ironia um produto feito para servir a eles, por um lado, e os materiais que ela decompõe, por outro. Tal sentido é o da metáfora e o do questionamento da condição da poesia, isto é, da obra de arte literária, nomeadamente, o seu carácter ambíguo, na medida em que se insere numa dimensão a que chamaríamos transcendental ao mesmo tempo que recorre ao empírico para representar ou tornar possível essa mesma dimensão transcendental.

Para oferecermos um quadro global sobre esta problemática ao longo da história da tradição literária e mostrarmos como a poesia de Léo Cote se enquadra nelas, tornando-se importante recuar às primeiras tentativas de concepção da produção literária, que se encontram em Platão e Aristóteles e avançarmos até hoje. A conclusão a que este rastreamento nos levará é que o entendimento da natureza e essência da arte na sua relação com a empiria foi sempre um entendimento extremado, no sentido em que ambas são vistas como estranhas uma da outra, e mesmo quando estabelecem algum tipo de relação esta se reduz a uma mútua instrumentalização.  

Este é o entendimento que Platão tinha da poesia, ao denunciar o seu carácter mimético, e submetê-la ao mesmo princípio que remetia todas as coisas, nomeadamente que eram cópias imperfeitas das ideias, e, por essa razão, descrevê-la em termos depreciativos e inautênticos. O que este entendimento nos sugere é que a essência da poesia, se ela quisesse gozar de alguma dignidade e autonomia, não deveria ser buscada na sua dimensão mimética, ou empírica na sua dimensão ideal ou, se quisermos, transcendental. O mesmo se pode dizer relativamente, tanto aos processos da sua produção quanto aos sujeitos que a produzem, neste caso os poetas. Por seu turno, Aristóteles, ao conceber a poesia como imitação, e ao aceitar que a mesma era uma característica intrínseca à natureza humana e que deveria concorrer para a moralização da sociedade, acabando, duma forma ou de outra, por legitimar não apenas a interacção quase que vital e necessária entre a arte e a realidade empírica, isto é, entre arte e os materiais que ela necessita para se tornar possível, mas também e, sobretudo, a primazia e a preponderância da dimensão empírica da obra de arte face a dimensão transcendental, pese embora ele mesmo se reposicione face a essa mesma ideia quando assume a poesia como sendo mais filosófica do que a História.

Como se pode depreender trata-se em ambos os casos de visões polares e extremadas que nos podem fazer perder de vista a obra de arte enquanto uma dualidade sem falhas entre o empírico e o transcendental, visões estas que, aliás, continuariam ao longo da história da reflexão sobre a arte em geral e sobre a literatura em particular a dividir opiniões entre, por um lado, a necessidade de cultivar uma arte desligada dos compromissos sociais, éticos, políticos, ideológicos e uma arte que estivesse ao serviço destes domínios, isto é, uma arte ligada à sociedade por relações instrumentais. O que nunca se admitiu é que tanto a arte quanto a sociedade, socorrem-se uma da outra, não para resolver problemas alheios, mas para resolver os seus próprios problemas, por uma necessidade vital. Mais do que indicar as relações instrumentais, apontar-se-ia as relações de simbiose, com benefícios mútuos, embora não simultâneos. Há neste a encenação de uma relação de simbiose entre a imitação e a coisa imitada.

Será muito provavelmente por causa desta relação de atracão e repulsão entre a arte e a sociedade que levara a prestigiada estudiosa brasileira, Vanessa Riambau Pinheiro a descrever a poesia de Léo Cote como encerrando um carácter fugidio em si. E o carácter fugidio da poesia só se torna possível através do jogo da redundância a partir do qual o poeta constrói o seu edifício poético, como se ignorasse os materiais concretos de que ele se constrói, ocupando-se tão-somente da forma genérica da sua existência.

Nestes aspectos a obra suscita-nos algumas questões tais como: Qual é a essência, se é que podemos falar de essência, da obra de arte literária, como funciona o seu jogo de representação; qual a função ou para que serve a obra de arte literária; qual o estatuto da obra de arte literária face as outras dimensões do saber; pode, a arte, enquanto do domínio do transcendente, gozar de uma plena autonomia face ao empírico em todas as suas múltiplas dimensões. E aqui podemos mencionar uma infinidade de questões e de propostas de respostas, mas todas elas divididas entre uma concepção idealista da obra de arte literária e uma concepção realista ou materialista, sugeridas na oposição entre o princípio de arte pela arte defendido pelos simbolistas franceses, Baudelaire, Guy de Maupassant, Mallaermé, Rimbaud e Flaubert e o princípio de arte pela ética, pela moral, pela ideologia, em suma uma arte com fins utilitários.

E aqui a obra de Leo Cote responde-nos positivamente, que sim, é possível encontrar um meio-termo entre uma concepção idealista da arte e uma concepção materialista, que é possível colocar a arte ao serviço dos homens sem reduzi-la ao mundo da experiência dos homens. E como isso é possível? Através do jogo da redundância, ou seja, a arte da construção da obra de arte literária, ignorando os materiais de que ela se compõe e atendo-se tão-somente nas suas categorias de existência, na sua enunciação. Com o efeito o poeta constrói o seu edifício poético, não com palavras objectivas que facilmente nos reenviem para o mundo específico dos homens, mas com palavras sensíveis, capazes de se adaptarem a qualquer realidade. Neste aspecto a poesia de Léo Cote não é um caso isolado. Há toda uma plêiade de autores moçambicanos, como João Paulo Jorge Coelho, Álvaro Taruma, Macvildo Bonde e outros, cuja estética literária ocorre não ao nível do conteúdo, mas ao nível da enunciação, do discurso.

Esse jogo de redundância ocorre já de partida na construção do título da obra, Campo de areia, pois segundo elemento “areia” já está pressuposto como primeira condição do primeiro “campo”. Se não se quiser admitir isto, pois bem, submeto o meu argumento a dois aspectos que se encontram no interior do livro, nesse jogo da construção de título. Refiro-me ao "Caderno das gravuras" e ao "Caderno das inclinações geométricas".

Tanto num quanto noutro caso estamos perante o jogo da redundância, ou o jogo da representação. Aquilo a que em terminologia literária se chama metáfora. E a metáfora enquanto fundada no princípio de analogia é um jogo de redundância em que o conceito do predicado nada acrescenta ao do sujeito, mas antes repete-o. Pois, é isso mesmo que nos dizem as ideias de gravura e de geometria enquanto estratégias de representação de algo que não existindo, poderia existir. E em todos estes sentidos, a obra de Léo Cote faz jus tanto ao primeiro quanto ao segundo princípio aristotélico segundo os quais a poesia é imitação e é mais filosófica do que a historia no sentido de que ao invés de se ocupar daquilo que existe, lida tão-somente com aquilo que poderia existir. Para Aristóteles essa imitação, (redundancia) não precisa necessariamente se basear naquilo que existe mas naquilo que poderia existir. Ao mesmo tempo estabelece uma síntese com a visão platónica na medida em que o seu processo de construção e representação começa e culmina ao nível do ideal ou transcendental. Concorre para efeito o emprego de uma linguagem destituída de identidade telúrica, geográfica, cultural, uma linguagem sem linguagem, uma linguagem que nos remete a um universo cosmopolita. O tempo e o espaço na sua dimensão conceitual e fugaz, intangível, desligados da experiência concreta dos homens.

Talvez doa menos uma gaivota no mar/ ou as abelhas toscas a salpicar o chão/ Aprendemos com as andorinhas/ a ver e ouvir passar o tempo/ e é severo o dia/ de não querer mais dele

Como nos mostra este poema em que procura encontrar o ponto de equilíbrio entre a dimensão transcendental da arte e a dimensão empírica. Nesse jogo de palavras que resultam nem em cópias fieis da realidade empírica, social, ideológica, nem em cópias fieis do mundo inteligível da poesia, como se pode ler no poema.

O tempo é uma casa grande/ que apodrece devagar/ não há luz que o apague/ nem há metáfora que o redima.
Com efeito o “tempo”, “a casa”, “a luz” aqui evocados não o são na sua dimensão empírica, social, isto é, que se associe ao mundo das experiência dos homens, mas o tempo na sua dimensão transcendental. Aliás, o mesmo se verifica com evocações de espaço, como campo de areia, no título. Aqui também não lidamos com um campo de areia que se associe a um mundo de experiência de uma determinada sociedade ou cultura, mas a um campo abstracto. Trata-se de areia enquanto um mero elemento da natureza, destituída de qualificativos como coloração e funções, não se trata de “areia de incomati”, aquela que utilizamos na área de construção civil, nem são as famosas areias pesadas que se tornaram um recurso estimável, muito menos se trata de “campo de treinos”, “campos de reeducação” ou de qualquer outra coisa.

E o poeta opera a semelhança do que Deus faz no seu acto da criação do mundo, em que opera a nível dos princípios, dos conceitos, dos postulados no sentido de que ao invés de construir o mundo efectivamente, dado que ele já dispunha da ideia da sua configuração e dos materiais de que ele se compunha, limita-se a repetir essa mesma ideia como se estivesse a emenda-la ou a experiencia-la mentalmente, sem ter em conta os materiais. E ai onde vemos formulada o conceito do homem enquanto um ser intangível.

No principio Deus criou os céus e a terra;  e passou a dizer venha a haver luz, então veio a haver luz e deus viu que era bom. (…) E Deus prosseguiu dizendo, Produzam as águas um enxame de almas viventes e voem criaturas voadoras sobre a terra, na face da expansão dos céus. (…) E deus pode ver que era bom.

Atente-se aqui a ideia de ver que não se trata de uma visão empírica mas antes de uma visão transcendental (mental), uma experiência que a mente divina tinha consigo mesma, com base na sua faculdade de abstracção.

Como se pode depreender tanto Deus quanto o poeta não concebem as coisas e depois as executam pelas suas próprias mãos, mas deixam a tarefa de as construir à responsabilidade de terceiros. Se, por um lado, Deus, após criar o mundo em e todas as coisas a nível conceptual durante os seis dias, deixou aos homens a tarefa de fazer esse mundo transitar dessa forma conceptual para a forma empírica ou prática, na medida em que a ideia de homem como um ser feito a semelhança de Deus só veio a ser construído na esteira dos dez mandamentos de Deus, anunciados pela boca de Moisés, por outro, o poeta deixa ao critério do leitor a tarefa de fazer a obra de arte literária transitar da forma transcendental para a forma empírica.

E o desafio agora é nosso enquanto leitores, tendo como primeira condição a leitura de "Campo de Areia".
Américo Pacule
 
 

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