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“Erasure”: Quando a imensidão da vida nos apaga

“A arte serve para consolar aqueles que foram quebrados pela vida.”
Vincent van Gogh

 

A imagem fotográfica é uma forma de preservação do que está condenado a desaparecer, revela-nos Roland Barthes. A verdade é que tudo está condenado a desaparecer – desde o que é físico até o que não se confina ao palpável. No final, tudo se esvai, esboroa-se. Tal como, filosoficamente, Heraclito de Éfeso (século VI a.C.) viu a vida como um rio em que “nenhum homem entra duas vezes”, as coisas não são estáticas. Ou seja, panta rhei (tudo flui) – até os nossos sentimentos, as nossas emoções, o nosso próprio “eu”, ao qual nos agarramos como se fosse algo pré-existente à nossa própria existência.

“Where do I land?” (Onde aterro? / Onde vou aterrar?) é um lugar onde se tenta preservar a efemeridade. Mas, se pararmos o tempo, nota-se a profundidade de tudo aquilo que passa depressa, que flui sem se perceber. Esta é a primeira exposição individual de Lillian Benny, e ela aproveita o espaço para interpelar o destino sobre o próprio destino: “Where do I land?”. A confusão é compreensível – o destino aqui não é geográfico, mas interno. São cidades mentais, sempre em dissolução, onde tudo, de facto, flui.

A beleza da exposição reside no que nos causa estranheza. Mas talvez isso seja o mais natural: tudo o que é reflexo da alma há-de causar espanto, porque a alma é como o espaço sideral – pouco se sabe dele e raramente se empreendem viagens de descoberta. Aos poucos, reconsidero o espaço do estranho na arte, porque parece que pode ser – e talvez deva ser – a sua essência.

“As legendas conferem direcção moral à imagem. São um meio de impor um significado, de canalizar a interpretação.” (Sontag, On Photography, 1977) A interpretação das fotografias foi, por momentos, difícil, pois os títulos das obras estão maioritariamente em inglês. Assim, a “interpretação” teve uma canalização algo apertada. Esta limitação interpretativa trouxe, no entanto, um certo requinte e elegância à exposição. O que certos títulos perdem na facilitação de leitura e imposição de sentido, ganham-no no sublime, no estético e no poético que emerge do misterioso e do estranho – como em “De nobilis ipsi silenums”, “Siegfried” ou mesmo “Erasure”.

É em “Erasure” que, mais do que ver ou traçar linhas interpretativas – porventura tortuosas –, sentimos a imensidão da vida. Quando se é criança, a vida parece caber toda na palma da mão.

Mas, à medida que crescemos, a vida cresce também – e fá-lo numa proporção muito superior à nossa. E o que nos resta? “São maningue cenas” parece ser a única forma possível de explicar o peso desta imensidão.

“Erasure” é um retrato da vida repleta de muitas vidas. O coqueiro representa a vida não orgânica – aquela que se desenvolve na convivência entre nós e os outros, misturada com sentimentos, emoções, lutas e corridas. Essa vida, embora fruto da nossa própria criação, cresce tanto que ganha vida própria, erguendo-se para além de nós. E nesse momento, instala-se a contrariedade:

já ninguém sabe o que fazer com essa vida que se impõe, pressiona (socialmente) e exige ser aceite. Tudo isto gira como uma bola de nove que rola montanha abaixo – ninguém a segura.

Esta vida cresce até se tornar um coqueiro, e vemo-nos, por vezes, desesperadamente pequenos – tal como o personagem na fotografia.

A vida, quanto mais cresce, mais nos torna pequenos e ínfimos. Esmaga-nos esta discrepância entre a sua robustez e a nossa fragilidade. E, assim, sentimo-nos cada vez mais diminuídos, mais apagados.

Outro aspecto relevante: toda a exposição é monocromática. Preto e branco – apenas – em todas as fotografias, o que adensa a atmosfera e intensifica a melancolia de quem observa. É um ambiente denso e profundo, que favorece a reflexão e a introspecção. Na fotografia em questão, a coloração cinzenta harmoniza-se com o céu nublado, remetendo para os meses que antecedem Junho, o prefácio do frio. A estação da vida que pede agasalho, recolhimento e, talvez, um abraço É algo digno de nota: em todas as fotografias há apenas uma figura humana e paisagens (muitas delas interiores), sugerindo uma viagem solitária em direcção ao destino. A obra “Erasure” segue essa mesma linha sugestiva. Aqui, ao contrário das outras, a fotógrafa parece querer dizer-nos que cada um, singularmente, sente o peso da vida. Ou que há viagens, na vida, cujo bilhete é só de ida e apenas para um. Como escreveu Dostoiévski, “Todos somos fadados a ser solitários, e passamos a vida a tentar não o ser.” (in Notas do Subsolo) A fotografia “Erasure” Integra a exposição “Where do I land?”, a estreia individual de Lillian Benny, patente até 30 de Maio. Nela, mergulhamos nas profundezas da alma humana – nesse lado escuro, no porão da casa, onde tudo está desorganizado e paira o cheiro a poeira.

 

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