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Ao que nos levou o fracasso do Estado Social

Po: Eduadro Quive

 

Moçambique está a viver um período que pode influenciar a transformação social e política. Ao que tudo indica haverá um país antes e um depois de 23 de Dezembro de 2024. Na verdade, a viragem terá se verificado com a morte do rapper Azagaia, a 9 de Março de 2023 que mobilizou vários extratos sociais e principalmente a juventude urbana, esta que agora lidera a contestação do processo eleitoral e,
por conseguinte, por um Estado Social.

Basta recordarmos o cenário vivido no velório do músico, a 15 de Março, com a cidade de Maputo praticamente paralisada com as pessoas a fazerem o cortejo fúnebre, desde a Praça da Independência até ao Cemitério de Michafutene. E ao longo do trajecto que embora forçado pelas autoridades que impediram que o corpo seguisse pela Julius Nyerere, supostamente por ser uma zona sensível, por a Presidência da República estar naquela avenida, as pessoas iam ficando paralisadas, prostrando-se ao corpo de Azagaia que entretanto desfilava a Avenida de Moçambique, a maior do país, com direito a escolta policial como se de um alto dirigente se tratasse ou… um criminoso

Basta recordarmos depois das manifestações que ocorreram sobre a égide da música "povo no poder" e a mensagem da liberdade de expressão, no dia 18 de Março, que culminou com o uso de força
excessiva da polícia sobre os manifestantes, com cães, gás lacrimogêneo, porrada e balas, uma das quais que tirou os olhos direitos a Inocêncio Manhique e Marcos Amélia.

Assim nascia o que passou a ser chamada Geração 18 de Março (2023), em meu entender, não só pelo sucedido nessa data, mas em paralelo com a Geração 8 de Março (1976), quando um grupo de jovens foi enviado para o estrangeiro numa missão estudantil que formaria os primeiros quadros para actuar em várias frentes do Estado Moçambicano que então se fundava após a independência.

Só depois emerge Venâncio Mondlane e todo este movimento que assistimos hoje. Antes houve a novela das eleições autárquicas de Outubro de 2023, onde depois de registo de fraude documentada, Mondlane iniciou uma onda de protestos que também paralisaram a cidade capital, com a repreensão de costume.

Que VM7, como se apelida, é um homem carismático, que não vem da tradicional política já se sabia. Mas é preciso reconhecer que a onda de insatisfação sobre os dois maiores partidos que sempre disputaram o poder entre si, era grande e gerou uma espécie de pacto da população, em que votaria em qualquer um que não fosse desses dois partidos. VM7 leu o cenário e emergiu em meio ao caos político. E o grito unificador passou a ser precisamente o que foi cantado por Azagaia, este que se inspirou em Samora Machel: Povo no Poder. A esse slogan, aplicou-se-lhe o sentido de pertença e amor à pátria: Este país é nosso. Coincidência, talvez, com um adágio popular Maconde xilambo axi xettu.

Feito o rescaldo, podemos escutar as vozes na rua e concluir que há muito que estas manifestações deixaram de ser unicamente sobre os resultados das eleições presidenciais, legislativas e para governadores provinciais. As muitas vozes que andam nas ruas reclamam um pouco de tudo, de Rovuma ao Maputo, o que podemos resumir em dois aspectos: a qualidade dos políticos e a efectivação de um Estado Social. É no último aspecto que se pensa ainda mais o fardo.

Há muito que se sente que o Estado se distanciou das suas responsabilidades com a população, sobretudo a mais pobre e vulnerável. E engana-se quem pensa que os governantes não se aperceberam disso. Basta contarmos o número de vezes que se viu o Presidente da República a abrir torneiras com direito a fitas decorativas, champanhe e uma cobertura mediática em cadeia nacional. Um país em que abrir fontes de abastecimento de água faz manchete diz muito da sua realidade. Há problemas sérios no acesso a serviços básicos, as pessoas têm de meter os pés nos rios, ceifar excrementos de animais e tirar água para beber; as pessoas têm de percorrer quilómetros para ter acesso a serviços de saúde, sendo que estes, na sua maioria, funcionam no horário normal de expediente nas repartições de Estado, das 7h30 às 15h30, e quase sempre faltam medicamentos; a electricidade para todos é uma miragem; a educação tem se resumido ao debate sobre salas de aulas (que são árvores), o livro escolar que nunca chega – e se chega tem erros graves – e a falta de pagamento aos professores. Podemos parar por aqui porque a lista é extensa.

Ora, se a rede hospitalar pública não chega para todos, sobretudo os mais necessitados, e tem a limitação horária dos gabinetes dos ministérios, o que acontece com quem ousa ficar doente fora das horas? Fora dos centros urbanos grande parte da responsabilidade fica para os saberes tradicionais, dos curandeiros e das pessoas vividas, que foram aprendendo a curar enfermidades através de ervas, com seus avós, suas mães e anciãos. Na cidade, a tarefa fica com as farmácias onde só dizemos o que sentimos e empurram-nos para uma medicação conveniente. E quando essas alternativas falham, agrava-se o estado de saúde, e vamos na boleia de uma camioneta para os hospitais centrais ou gerais, percorrendo quilómetros em estradas de terra batida ou com buracos assassinos, morrer é o caminho menos tortuoso.

A Educação vai caindo em desgraça. O ensino público, principalmente o nível básico (1a a 6a classe) foi se afundando ano após ano. Nos últimos anos apenas escalamos o cúmulo da desolação. Se por um lado parece se ter vencido o desafio de quase em cada bairro ou aldeia ter uma escola primária, não se pode dizer o mesmo sobre a aprendizagem, o livro escolar e a infraestrutura. Antes utilizei
uma afirmação de Ungulani Ba Ka Khosa, que para além de um grande escritor foi professor em tempos do socialismo, que se refere ao estado da educação pelo que se vê e escuta no discurso do governo –
construção de salas de aulas. Mas vamos ao verdadeiro problema: a escola pública deixou de ensinar com qualidade em grande parte do país; os professores já andavam desmotivados pelas condições de
trabalho, mas o circo melhorou com a falta de materiais de apoio para o aluno; o livro escolar que quase sempre não chega para todos e, de repente, nos últimos dois anos chegou no meio do ano (em 2024 foi
destruído no último trimestre do ano lectivo). O livro sempre tem erros graves. Entretanto a educação avança, com construções de salas de aulas que nas chuvas seguintes vão logo abaixo, com os alunos no seu
normalíssimo relento. As consequências imediatas e que directamente são associadas ao mau processo de formação são as admissões nas universidades ou ainda, cada vez mais recorrente, admite-se mesmo
assim os estudantes com dificuldades e depois o problema vai se ver lá à frente. Foi notícia em 2021 a reprovação em massa de candidatos a magistrados, no Centro de Formação Jurídica e Judiciária.

Os males que resultam da má Educação e nada focada no Desenvolvimento Humano, aliado a uma governação reactiva, andam à vista de todos. Quando chega a época chuvosa e eclode a cólera em muitas comunidades acredita-se que os produtos usados para purificar a água é que causam a doença. Pois é, a população sempre partilhou a água com os animais ou retiram a água dos poços, do nada elas vêem pessoas a vir das cidades, deixadas nas sedes dos distritos de viaturas de alta cilindrada, com detergentes para meter na sua água. E depois a cólera simplesmente não acaba e as pessoas continuam a adoecer.

Ir ao lar continua a ser a maior oportunidade de singrar na vida para as famílias, com as raparigas a terem de entrar no jogo do prestígio de toda a rede familiar, engravidando e casando cedo.

Os rapazes continuam a ver oportunidades nas ruas, às vezes em actividades criminosas. Mesmo formados e capacitados, as oportunidades de emprego são escassas ou precárias, até para os que veem as multinacionais a instalarem-se nos seus distritos. Muitos foram os que imigraram para Maputo na ilusão de que as coisas sejam melhores aí, mas depararam-se com uma precariedade que está em
níveis tão escandalosos como os ricos e endinheirados em 24 horas, que se exibem nas redes sociais e nas avenidas. Pensemos nas pessoas que armaram barricadas e cobraram uma taxa para passagem, e
lembremos dos homens que se sobrepõem às autoridades municipais na cidade e cobram também pelo estacionamento e guarnição das viaturas? Sabemos todos o que acontece com quem ousa desafiá-los,
mas preferimos fingir que damos-lhes os 10 meticais como uma contribuição para as suas vidas miseráveis ou por uma troca de serviços sem termos e condições nem direito a recusa.

E não é que tinha dado nas modas ver jovens e adultos a exigir a sua «parte» do país ou a pedir as «chaves» para abandonar o país à procura de oportunidades no estrangeiro, num tom claro de não vislumbre de um horizonte e perspectiva de vida nas condições sociais actuais, mas também da frustração com as lideranças políticas, muitas vezes falaciosas, pouco dadas a cumprir com as promessas.

Em suma, assistiu-se a um Estado Social falhado, onde as diferenças foram crescendo a olhos vistos, sem um atendimento adequado a quem vivem com maiores carências, sem proteger os cidadãos, muito menos promover a igualdade de oportunidades para todos.

No meio disso, as igrejas foram se multiplicando, sendo as instituições mais presentes no país, em terra, na televisão e nas redes sociais. Elas passaram a expor-se como o alento e a esperança das pessoas. Expulsam demônios, purificam as almas e mostram a luz no fundo do túnel. Curam as doenças espirituais e a dor física, com as suas poções mágicas e orações que não cessam de dia e de noite. Nas cidades o cenário é pior, há leilões de arrendamentos de cubicos entre a igreja e a barraca, como na luta titânica entre o diabo – álcool, drogas – e os anjos – a palavra dos pastores e profetas. Os cultos são de hora em hora, mais as horas extras que os pastores(as) fazem acompanhando a vida privada dos fiéis, que contam-lhes tudo e mais alguma coisa do que lhes acontece. O emprego, os negócios, a saúde, a segurança (pois que com Deus não há mal que vença), as relações amorosas, a procriação, e em tudo, passou-se a confiar à “mão de Deus”. E, claro, tudo isso contando que se entregue a décima parte de rendimentos que as pessoas mal conseguem ter.

A igreja ocupa espaços do território moçambicano que nem o Estado alcança, fazendo elas, o que muitas vezes devia ser o outro a fazer. O verdadeiro poder, hoje, está no “evangelho” e  “profecias” que, por exemplo, no que a escola ensina e no tratamento hospital. Hoje, as histórias de sucesso são contadas em programas de televisão, pois as igrejas são os melhores clientes das emissoras, com testemunhos de
pessoas que abandonaram tratamentos que “não resultavam” pelo poder do “espírito santo” ou então prosperaram nos negócios, tiveram empregos, resolveram situações complicadíssimas, injustiças ou
feitiçaria, problemas em conceber e as tradições dos cônjuges.

Pois, mais uma vez, não tenhamos ilusões, também isso os políticos e governantes sabem, basta ver que todos vão às igrejas para pedir voto e receber o poder do "espírito santo" para alcançar o poder sobre o povo e governar. Não é atoa que a imagem da veneranda juíza presidente do Conselho Constitucional “viralizou” nas redes sociais quando colocada no contexto das vésperas da proclamação dos resultados das últimas eleições, como se de uma decisão entre o bem e o mal, se tratasse. Escusado será fazer menção que os últimos presidentes da Comissão Nacional de Eleições eram líderes religiosos. Mais ainda, organizações religiosas fazem observação eleitoral. E porque sempre vale a pena, podemos recorrer ao próprio governo que está a cessar as funções que têm um Ministério da Justiça, Assuntos Religiosos e Constitucionais, será para garantir a laicidade do Estado?

E no meio disso tudo percebemos que, de facto, quem tem fé não está errado, parece que vai precisar-se de um autêntico milagre para que saiamos da encruzilhada em que estamos ou da coragem dos homens de bem para que não seja a sorte a ditar a nossa sina. Certo é que o próximo ciclo de governação carrega o grande peso de descer às profundezas dos problemas e fazer uma abordagem que não seja sob pressão de cortar fitas, fazer fotos e “postar” nas redes sociais para o povo ver que fez. Sobre o que fazer, as ideias vêm de todos os
lados e este é o momento de se ver com os olhos de ver.

Para não fugir a regra da piada facebookiana que nos retira o direito à reflexão, P.S: isto não é sobre igrejas.

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