Entre o silêncio das paredes e o som das memórias,
a arte revela o entrelaço do passado e do presente.
Ao cruzar o limiar da Galeria Kulungwana da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, este espaço, tradicionalmente dedicado ao movimento incessante dos passageiros, transforma-se em um palco onde as obras se tornam compassos de uma sinfonia visual e funcionam como trilhos para uma jornada sensorial, em que o passado e o presente se encontram e a arte se torna um veículo para explorar novas dimensões da experiência humana.
A exposição “Nanquim Preto sobre Fundo Branco”, curadoria de Natxo Checa (Portugal) e Alda Costa (Moçambique), é uma retrospectiva que destaca a relevância histórica e artística do pintor no contexto do modernismo em Moçambique.
João Ayres, com seu domínio sobre o traço e o uso deliberado da monocromia, nos convida a uma reflexão sobre a condição humana e os cenários socioeconómicos.
Como diria Jean-Paul Sartre, “a existência precede a essência”. De facto, as obras revelam como a existência com suas lutas e experiências molda a essência da identidade e do ser, criando uma narrativa que desafia a simplicidade visual para revelar as nuances da condição humana.
Através de suas pinturas, propõe-nos um diálogo com as correntes intercontinentais vigentes na época, como o neorrealismo, concretismo e expressionismo.
Ao observar as quatro obras, somos apresentados uma paisagem que transita entre o movimento colectivo e a introspecção individual. A escolha do preto sobre o fundo branco traça um contraste que acentua a dualidade entre a luz e sombra, presença e ausência, vida e vazio.
Em termos técnicos, a preferência do nanquim sobre fundo branco é particularmente significativa. Diante desse cenário, a austeridade e a pureza do fundo branco discrepam de forma evidente com as linhas escuras do nanquim, enfatizando as emoções e as tensões presentes nas figuras retratadas.
Essa técnica minimalista, mas ao mesmo tempo dominante, retém a essência dos temas abordados por Ayres: o esforço humano, a opressão e a busca por identidade num mundo em constante transformação.
Naturalmente, a primeira imagem, acima, à esquerda, sugere uma procissão ou uma marcha, em que a massa de figuras parece avançar para além dos limites do quadro. Este movimento colectivo pode ser interpretado como uma alusão à história de resistência e às jornadas de luta que marcam o povo moçambicano.
Há uma sensação de anonimato entre as figuras, que, apesar de estarem unidas, mantêm suas individualidades ocultas pelo jogo de luz e sombra, algo que mostra as dificuldades das interacções sociais em contextos de servidão e aspiração.
Sob outro ângulo, o quadro acima, à direita, desvia-se substancialmente dos outros, ao apresentar um cenário mais vazio, possivelmente uma paisagem ou um espaço natural desprovido de figuras humanas.
Este espaço, que parece ser um momento de pausa ou reflexão, rompe com a concentração das outras obras e nos convida a contemplar a vastidão e o silêncio. Este vazio pode ser visto como uma metáfora para os momentos de solidão ou perda, ou talvez a vastidão de possibilidades e incertezas que permeiam a vida.
Surpreendentemente, as duas imagens, no quadro, em baixo, voltam a introduzir figuras humanas, mas em contextos que sugerem cenas de vida cotidiana.
Na imagem à esquerda, em baixo, as figuras parecem estar envolvidas em algum tipo de actividade comunitária, talvez um mercado ou uma reunião social, onde os corpos se cruzam e se conectam, criando um dinamismo que contrasta com o isolamento da obra em cima, à direita.
A luz desses factos, na imagem à direita, em cima, a intimidade entre as figuras sugere uma cena de cuidado ou ensinamento, onde a transmissão de saberes ou afectos é central. Aqui, o pintor comentava sobre a importância dos laços familiares e comunitários na construção da identidade e na resistência cultural.
O traço de Ayres, solto e expressivo, suporta um peso emocional que transcende a simples representação visual.
Há uma crueza e uma urgência em suas pinceladas, que dialogam com a história de Moçambique, marcada por lutas de libertação e processos de reconstrução nacional.
As obras não documentam apenas, também questionam e subvertem as narrativas dominantes, oferecendo uma visão que é ao mesmo tempo universal e consideravelmente enraizada no moçambicano.
Além disso, a exposição resgata séries de pinturas e desenhos neo-expressionistas dos anos 50, criados para serem exibidos em importantes instituições de arte, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a galeria do Ministério de Educação e Cultura do Rio de Janeiro.
O resgate proporciona ao público de Maputo a oportunidade de redescobrir uma obra que, por muitos anos, esteve esquecida e distanciada de sua terra de origem.
A apresentação das obras, apesar de cuidadosa, pode deixar a desejar em termos de contextualização histórica. Algumas peças carecem de explicações mais detalhadas que ajudem o público a compreender melhor o contexto em que foram criadas e como se relacionam com o momento social e político de Moçambique à época.
Contudo, o carácter de “regresso a casa” desta exposição é, portanto, um marco essencial na preservação do património artístico moçambicano, demonstrando o poder da arte em suscitar autoanálises e críticas sobre nossa identidade colectiva.
Como Vladimir Maiakovski observou, “A arte não é um espelho para reflectir o mundo, mas um martelo para moldá-lo.” Esta mostra, aberta ao público na galeria de artes Kulungwana, até o dia 27 de Setembro, oferece uma oportunidade única para explorar o legado singular de um dos grandes precursores do modernismo em Moçambique, revelando, como disse Albert Camus, “A resposta ao absurdo da condição humana.”