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A menina que espiava a alegria

Passaram-se várias estações: aquela em que o sol brilha intensamente, trazendo alegria e esperança; a que se segue, em que o sol se esconde e o frio penetra até às entranhas; e ainda aquela em que as folhas caem no quintal, dançando ao sabor do vento. No entanto, as dúvidas que pairavam na minha mente não me deixavam em paz.

Sempre observei a forma enigmática como vivia aquela menina da minha idade no bairro. Sim, a menina linda, baixinha, com a pele negra como carvão e olhos tão escuros que pareciam poços profundos, que nunca refletiam emoção. Para ser honesta, posso afirmar categoricamente que nunca vi a cor dos dentes dela — se é que os tem!

Só sei que tem 14 anos, pois a minha mãe mencionou que era da mesma faixa etária que eu. E quando questionei uma vizinha mais próxima sobre ela, obtive apenas uma resposta evasiva, mas o que realmente me intrigava era por que ela não se juntava a nós nas nossas brincadeiras de rua.

Essa curiosidade despertava em mim uma vontade crescente de conhecê-la, de entender o que se passava na mente daquela menina tão distante. O contraste entre a nossa alegria e o seu aparente isolamento tornava-se cada vez mais angustiante.

Ficávamos tão empolgados durante os feriados e as férias, fazendo tanto barulho que até quem não queria brincar acabava por se juntar a nós, atraído pelos nossos gritos alegres que ecoavam pelo bairro. No entanto, aquela menina parecia viver num mundo à parte, imune à nossa alegria. Sempre que perguntei à minha mãe sobre ela, a resposta era a mesma: “Deixa-a em paz, minha filha. Brinca com quem quer brincar.” Mas como faria isso se a angústia não me deixava a mim? percebi que, mesmo de longe, ela nos espionava por um buraquinho entre o murro da sua casa, e eu poderia jurar que o seu coração pulsava de vontade de se juntar a nós, mas não sabia o que a impedia…

Decidi que queria entender mais sobre a sua vida e por que ela parecia tão distante. Na minha mente, vestia-me como uma detective e comecei a investigar a origem daquela menina que chegara recentemente ao nosso bairro. Contaram-me que ela vivia com o tio que a adotara como filha — à parte da sua família biológica, estava no distrito de Molevala, na província da Zambézia, cá mesmo em Moçambique. O que me intrigava era saber onde estava a mãe dela e se estava realmente doente, como me disseram — esse vazio só aumentava as minhas perguntas. O que teria acontecido à sua família? Como era a vida dela antes de vir para cà?

Mais intrusiva do que teria previsto, comecei a espreitar pelo buraco que ela usava para nos observar quando brincávamos na rua. Numa das minhas investigações, vi algo que me gelou o sangue: a cena brutal em que o seu tio a agredia fisicamente… a cada golpe parecia que também atingia o meu coração. Escutei os gritos desesperados dela, implorando por misericórdia, e a impotência tomou conta de mim. Ninguém fazia nada! 

Os vizinhos ouviam, mas permaneciam em silêncio, como se a dor dela não fosse a dor deles. Voltei para casa em prantos, contando à minha mãe o que vi, esperando que ela pudesse agir de alguma maneira. Porém, em vez disso, a raiva surgiu nela — zangou-se comigo por estar a ‘espiar’ a vida alheia. E eu? Também ficava zangada, porque não era a espionagem que me preocupava, mas sim a brutalidade do que acontecia diante dos meus olhos.

A cada dia, o meu desejo de ajudar aquela menina aumentava, mesmo após o seu tio ter sido o terror da sua vida. Decidi espreitar pelo buraquinho para ver como a minha amiga estava, e, para minha surpresa, percebi que o amor que ela sentia pelo seu irmãozinho de 1 ano de idade era profundo, quase avassalador. Para ela, ele não era apenas um irmão; era como uma das suas bonecas, à qual dedicava todo o carinho que possuía. Às vezes, via-a brincar com ele de forma ternurenta, oferecendo-lhe o peito para mamar, e ele aceitava o gesto com a naturalidade de um pequeno que confia incondicionalmente. A cena era ao mesmo tempo doce e dolorosa; a inocência daquela brincadeira contrastava com as sombras da sua realidade.

Pelo menos, fiquei aliviada ao ver que, de alguma forma, a menina encontrava alegria nas suas brincadeiras de amamentar o irmãozinho (como eu fazia com as minhas bonecas… ah, quem me dera também ter um irmãozinho para brincar de dar de mamar), mesmo que a vida lhe tivesse imposto fardos tão pesados. 

O que me deixava inquieta era a suspeita de que ela tinha descoberto que eu andava a espioná-la, mas, estranhamente, parecia não se importar com isso. E, pela primeira vez, vi um sorriso genuíno iluminar o seu rosto. Era um sorriso lindo, com dentes branquíssimos que pareciam brilhar à luz do dia, um sorriso tão contagiante que me fez acreditar que talvez, só talvez, ela estivesse a começar a gostar de mim também como amiga.

Aquela reação positiva trouxe um misto de esperança e emoção ao meu coração, como se, naquelas pequenas interações, estivéssemos a desbravar um caminho para a verdadeira amizade, apesar das barreiras que nos separavam. Entretanto, os dias foram passando e a sombra do seu tio continuava a pairar como um lobo à espreita. A forma como ela reagia na presença dele mudava drasticamente; havia um medo que a fazia encolher. Pedi-lhe certa vez para me abrir a porta, mas a resposta foi diferente daquela que obtinha antes, e a certeza de que ela não desejava falar veio como um golpe. Os meus instintos diziam que o homem não era pai nem tio, e o mistério permaneceu. Mas foi através de uma conversa reveladora que finalmente soube a verdade: aquele homem era o seu marido e não seu tio ou pai.

Fiquei paralisada. Como poderia aquilo ser verdade? Ele parecia mais velho que o meu próprio pai! A história que se desenrolou diante de mim foi uma mistura de horror e tristeza. Ela foi oferecida em casamento quando a sua família passava fome e, agora, além de cuidar do que presumi ser seu irmão e não era, mas sim filho, ela tornara-se a propriedade desse homem cruel. O meu coração, de alguma maneira partido por ela, questionava o mundo à minha volta, e uma raiva profunda me invadia, ela so tem 14 anos, tal como eu!

Decidi que não poderia ficar de braços cruzados. Com o desejo de ajudá-la pulsando em meu peito, procurei formas de intervir. Mas as sombras do medo e das consequências recaíam sobre nós como nuvens ominosas. Não sabia como poderia ser a resposta do mundo, nem até onde iria por uma amiga que mal conhecia, mas algo em mim gritava que não poderia ficar inerte. O que poderia fazer? O que poderia realmente ajudar?

Estas perguntas também ecoam na minha mente como assobios do vento, e a cada resposta que tento encontrar, o labirinto de dúvidas tornava-se mais profundo. Como iremos acabar com as uniões prematuras, e a violência doméstica em Moçambique? 

À medida que refletimos sobre as histórias de vidas marcadas pela dor, pelo sacrifício e pela perda, somos confrontados com a dura realidade dos casamentos prematuros e da violência doméstica. Estas não são meras estatísticas, mas diálogos íntimos e silenciosos que ecoam nas vidas de adolescentes e crianças inocentes, como a pequena menina de que relatamos, e de tantas outras meninas e mulheres que têm os seus sonhos e esperanças desfeitos por tradições que perpetuam o sofrimento.

Cada união que se celebra sem a liberdade de escolha é uma vida que se arrisca a ser dilacerada pelas garras da opressão. Cada menina levada ao altar contra a sua vontade é uma promissora vida fechada dentro de quatro paredes, onde a violência se torna uma sombra que a acompanhará, dia após dia. A realidade é cruel, e a dor que estas meninas enfrentam não pode ser subestimada.

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